sábado, 30 de dezembro de 2006

Voto de Ano Novo

Véspera de Natal, desfazíamos as malas da viagem de férias e fazíamos novas malas para a viagem de Natal. A chuva havia dado uma trégua. Meia tarde, batem palmas no portão; quem ouve é o cachorro. Ouve-se um coro de três crianças.
- Feliz Natal, tia! Tem alguma coisa pra dar?
A minha cidade é uma cidade pequena, e é raro que apareça alguma criança ou outro pedinte. Mas o raro não é o impossível, e às vésperas de Natal toda criança deseja ainda mais alguma coisa. Nem que seja comida.
- Você tem fome? - pergunto.
- Sim.

Mentalmente, reviro todas as gavetas da casa em busca de um brinquedo, um caderno, um gibi que seja. Qualquer coisa diferente da necessidade básica da alimentação. Reviro minhas lembranças, meus conceitos, todos os valores guardados nas frestas abstratas da vida. Onde estão os restos de minha infância?
Sinto-me pequena.
É Natal.
Entrego um pão, um doce para passar no pão, um pote de balas e uma colher.

O ano termina. E o ano novo, que deveria ser novo, acaba por tornar-se igual ao ano velho. E nada vê-se de novo! A novidade está unicamente nas roupas novas das grandes festas de reveillon. De resto, tudo é resto. Acontece a involução.

De todos os votos que me vêm para o ano novo, e de todos os votos que emito, pensando bem, o que mais prezo é aquele que ainda não fiz publicamente. Que um dia, no ano novo, ou quem sabe - se é que ela realmente existe - numa nova encarnação, que seja num futuro remoto, mas que seja, o ser humano seja humano no sentido pleno da palavra. Que a violência deixe de existir, que as mães, pais e filhos deixem de morrer nas ruas, nas cadeias; que as próprias cadeias deixem de existir.
Desejo que, no ano novo dos meus tataranetos, talvez, não haja crianças pedindo de comer, nem às vésperas de Natal, nem em nenhum dos outros dias.

É este o meu verdadeiro voto de ano novo: que o ano novo aconteça
, enfim.

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Arquipélago

Meus olhos são espelhos para os teus reflexos invisíveis.
O meu poema aqui,
e este sorriso que tenho,
são as minhas armas contra a tua ausência.
Eu fico assim, hoje e sempre,
e o teu caminho se esparrama aos meus pés.

Meus olhos são canais para a tua correnteza.
Revejo o meu barco em naufrágio
e a minha fuga
leva-me sempre para a mesma noite
perdida, no meio desta ilha escura.


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Ainda

Ainda te espero como se viesses.
E, antes mesmo que o meu sonho acabe,
o dia amanhece.

Ainda guardo a flor que me deixaste
e que secou, como o amor que me juravas.
Mas de que chão havia brotado aquele ato?
Quanta verdade tinha a flor que me ofertavas?

Ainda ouço no caminho antigos passos
que reacendem a tua antiga beleza.
Só não mantenho a alegria daqueles tempos;
é toda morta, morta a natureza.

Ainda passo longas horas de lembrança
e o teu retrato, em minha mente, ainda existe.
E se ele pudesse, talvez me diria:
"Faz tanto tempo! Por quê ainda insistes?"


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Conto de Fadas

(16/11/2002)

A gente tinha aquela química louca
ele me beijava e eu estremecia
De tudo um pouco a gente conhecia
A gente nem sabia
Mas as palavras eram mel na nossa boca

A gente ria e cantava umas canções
e alguns instantes sem querer se entristecia
era a coisa mais romântica que havia
vinha tão claro, um abraço que insistia
e a gente comentava sobre as nossas sensações

A gente falava de pureza e de pecado
e se chamava de princesa e de felino
Ele era assim, meio menino
muito maduro, muito repentino
e eu me sentia segura pelo seu cuidado

A gente discutia alguma nota musical
e eu ficava boba olhando o seu sorriso
Ele tinha um jeito assim muito preciso
promessa de paraiso
talvez já fizesse parte do nosso mapa astral

A gente nao tinha hora, nao tinha prazo
mas tinha um sentimento difícil de conter
a gente conversava ate o sol nascer
(era uma loucura que tinha que acontecer,
nada nesta vida é por acaso)

A gente era mesmo muito parecido
discutia espiritismo, bilhar, reencarnação
falava de umas coisas que tinha no coração
era tão pura a nossa relação
que a gente ia embora com o peito enternecido.


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quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Menino do jornal

O menino do jornal vem subindo a ladeira. Vem caminhando, está sôfrego. Vem empurrando a bicicleta colorida, a garupa carregada de jornais. No rosto do menino do jornal tem uma gota, que não é lágrima. É suor, que ainda não teve tempo de evaporar. Acabou de nascer, a gota; e logo sumiu. Tudo é uma questão de tempo, inclusive para as gotas de suor sob o sol escaldante.
De longe, se conhece que é o menino do jornal que vem chegando. É ele o único menino que passa pela rua naquele zigue-zague ritmado. Nos dias de chuva, quando seu rasto fica pelo chão, o menino desenha, sem querer, um exemplo prático de senóide. A onda está lá, simétrica. Poderia-se estudar, com o rasto do menino do jornal, questões importantes da Trigonometria.
Alguns detalhes estão claros sobre o menino do jornal. A bicicleta colorida fica mais colorida com o adesivo da banda preferida. Está sempre limpa, brilhando. O menino tem orgulho da sua máquina. Nem tudo é original; muito é adaptado. Para andar mais, para andar melhor, para deixá-la mais bonita. O menino do jornal gosta de ser visto, por detrás do jornal, e na frente da garupa. No ponto exato onde apenas ele seja visto. Ele, e a sua máquina, que é o seu orgulho.
O menino do jornal não tem dia nem noite. Nem tem estação. Para alguns, faz inverno e verão; para ele, faz hora de trabalhar. O menino do jornal está na rua, quando chove e o termômetro está negativo. E o dia não amanheceu. Ele se supera, tem força. Seu despertador toca muitas horas antes dos despertadores dos meninos da sua classe, na escola. E o sono não pode ter vez. É um campeão. E quando toda a cidade acorda, ansiosa para ler o jornal do dia, mal sabe que o menino do jornal está lá, preparando tudo, contando jornais, lembrando endereços, zigue-zagueando; ele e sua máquina, desde a madrugada.
Nada pode acontecer ao menino do jornal. Quando se demora pouco mais, a cidade, ora preocupada, ora revoltosa, se manifesta. Dentre os apelos pela chegada rápida do menino, ouvem-se poucos risos e muitas lamúrias. Então o menino atende ao celular que comprou com o primeiro salário, e é informado sobre o caos que se instala na cidade, em função da sua demora. Levanta a bicicleta, limpa o joelho que ralou, analisa se os jornais estão a salvo, e segue heroicamente o restante do percurso, empurrando a máquina, cuidando que o pneu furado não lhe cause maiores prejuízos.
A memória do menino do jornal não pode falhar. Entre as centenas de jornais que carrega na garupa, estão preferências que só ele conhece. Este fica debaixo da porta; aquele, na caixa de correio. Aquele outro, menino do jornal, você deve subir pela escada e colocar debaixo da caixa d’água. E o outro, ainda, você deve colocar em cima do pneu dianteiro direito do carro na garagem. O menino do jornal não pode esquecer. Tem que ser perfeito. Do contrário, vai atender ao celular e, outra vez, ser informado do caos que se instalou na cidade.
Quando o menino do jornal é interrogado sobre a sua profissão, ele diz: eu sou o menino do jornal. Mas poderia, sem mentiras, dizer: eu sou a base operacional daquela empresa que faz o jornal. Para quem não acreditasse, ele poderia contar, outra vez sem mentiras, que, quando ele erra, ocorre na empresa um terrível efeito dominó. Entre o menino do jornal e o balancete do jornal, há uma distância muito sutil. Mal sabe o menino do jornal. Muitos, mal sabem. Para alguns, o menino do jornal será, por toda a vida, o menino do jornal. E somente quando o menino do jornal já não for o menino do jornal, ele dirá, com orgulho, que o mundo seria melhor se todos tivessem um pouco de menino do jornal.

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Primeiro Amor

Lembro-me claramente da primeira vez que vi você. Você sentado numa carteira da fila ao lado, um lápis colorido na mão, no primeiro dia de aula da nossa turma de pré-escola. Estava lindo. Você vestia a tradicional bermuda xadrez azul e branca com uns lindos suspensórios pretos. A camisa, branca.

E eu estava lá. Na primeira carteira, da primeira fila, expondo meus novos lápis-de-cor, multicoloridos, cadernos encapados com celofane cor-de-rosa, uma tetéia. Pensei se eu estava bem no meu vestido rodado xadrez azul e branco, igualzinho à cor da sua bermuda. Arrumei a meia esticando-a até o joelho, conferi meu sapato preto. Estava tudo em ordem. Dali até você me notar, seria uma simples questão de levantar-me e apontar o lápis no lixeiro, próximo à porta.


Cheguei à conclusão de que o meu vestido xadrez azul não estava ajudando muito. Ou seria a idade? Talvez você gostasse de uma menina mais velha, bem mais velha que você, com uns sete anos, talvez oito. Mas eu só tinha seis, recém completados.


Passei noites e muitas horas de recreio pensando sobre o que fazer para que você me notasse. Pensei em derrubá-lo no pátio da escola, em dar-lhe a maçã que havia levado para o lanche, em lhe mostrar o coração que eu havia desenhado com o seu nome, quando aprendi a escrevê-lo corretamente. Mas nada eu conseguia. E você era daqueles meninos que saíam como um flash da sala de aula, bastava a ameaça do sinal. Ficava lá, jogando bola, tomando sorvete, comendo salgadinho com coca-cola e mascando chicletes.


Mas as crianças sempre têm umas idéias brilhantes. Naquela noite, em casa, eu fazia o que mais gostava: fuçava nas caixas de papéis que papai guardava. Aquelas coisas importantes, documentos que eu nem conseguia ler direito, folhas bonitas, coloridas, carbonos verdes, vermelhos, chaveiros e algumas canetinhas coloridas, tudo guardado naquelas caixinhas de sapato. Sentada no chão, na sala, eu olhava tudo; era a minha diversão predileta. Papai, do sofá, lendo revistas, vendo o jornal, respondia minhas perguntas, uma a uma.


Num momento da minha inocente investigação, encontrei um talão de cheques com algumas folhas, no fundo da caixa. Ora, se estava no fundo, papai não devia precisar. Ninguém nunca mexia naquelas caixas, somente ia-se acrescentando novos e novos papéis. Eu já sabia o que era um talão de cheques, já havia entendido. Era um bloquinho com folhas que podiam conter qualquer valor, e que pagavam nossas contas. Papai também havia explicado alguma coisa sobre o assunto.


- Pai, por que estes cheques estão jogados aqui nesta caixa, e não na sua carteira, como os outros?


O pai explicou que eram cheques antigos, de um Banco do qual ele não era mais cliente, e por isso estava lá, e não na sua carteira.


Subentenda aquilo que eu subentendi. Crianças são inteligentes. Brilhantes. Têm idéias inimagináveis. Eu logo vi, era aquela a saída. Eu podia ter tudo o que eu quisesse. Inclusive, o seu amor. E seria breve.


A tarde chegou e aquele era o dia mais feliz da minha vida. Eu caminhava para a escola com a certeza de quem faria um ato incomparável, que nenhuma outra menina, nem de sete, nem de oito anos, faria. O meu ato seria único, e você finalmente me notaria.


No recreio, pedi à minha melhor amiga que fizesse a intermediação. Num envelope colorido que fiz com folha de caderno, com aquele coração desenhado, contendo o seu nome no meio, mandei entregar-lhe o meu melhor presente. O cheque. Pensei numa quantia alta, considerável. Assinei. E mandei, com o cheque, um recado: é para você guardar, para o nosso casamento.


De retorno, ganhei um namorado. Você olhava para mim durante a aula, e, num momento extremo de paixão, mandou-me uma bala de hortelã. Eram dias felizes. E eu ainda tinha duas folhas de cheque, das três que estavam no velho talão. Guardei-as, como quem guarda o maior tesouro; uma pequena folha que pode me dar um grande amor. Haveria um momento para usá-las. Papai devia ser mesmo uma pessoa feliz, com tantas folhas como aquelas que ele tinha.


Infelizmente, o nosso namoro durou menos de uma semana. Na limpeza semanal da minha mochila, mamãe encontrou as folhas preciosas, guardadas, junto aos meus cadernos. Fui obrigada a falar o que havia feito com a outra folha. Claro, não disse tudo. Poderiam querer mudar-me de escola. Disse que havia dado, de presente, a um amiguinho. Triste decisão.


Papai quase enlouqueceu. Explicou-me que, se eu não trouxesse a folha de volta, ele poderia ser preso porque não teria dinheiro para pagar o cheque que eu havia feito. Fiquei sabendo que as pessoas pagam por seus cheques, com um dinheiro que guardam no Banco. E que é proibido assinar uma coisa em lugar de outra pessoa, e que a isso chamavam falsificação de assinatura. Mas eu expliquei que havia assinado com o meu nome, e, portanto, não havia este risco. Só que papai não podia ser preso! Não havia solução. Era o fim.


No dia seguinte, com aquela tristeza que você pode imaginar, cheguei à escola. Minha melhor amiga foi, outra vez, minha interlocutora. Pediu-lhe, que, se você ainda não tivesse usado o cheque, por favor, devolvesse, porque eu não o amava mais. E o que mais eu poderia dizer? Pensei na única forma de pedir, sem deixar parecer que eu havia roubado o cheque de papai. E que eu não tinha aquele dinheiro. Seria ainda mais terrível. Você teria rido, e o meu vestido xadrez azul teria sido pequeno demais para esconder a minha vergonha. Então falei o óbvio: devolva-me o dinheiro, porque não quero mais me casar com você.


Bem, foi aquele o fim do nosso amor. E eu lhe agradeço pela bala de hortelã. Certamente hoje, quase vinte anos depois, eu não teria coragem de mandar um cheque ao meu amado, para pedir-lhe em casamento. Mas minha melhor amiga, que havia sentido tudo de perto, disse-me uma linda frase de consolo, que havia ouvido em algum lugar: o verdadeiro amor, a gente não compra; a gente conquista.



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quinta-feira, 28 de setembro de 2006

Casinha de Bonecas

Quer exemplo maior da rapidez da vida
Do que uma casinha de bonecas no quintal?
E o que havia ali?
Ontem, um ontem bem próximo,
Havia ali um ruído quase insuportável
Vozes demasiadamente aceleradas
Vem aqui, sai dali, que linda sua boneca!
Quadrinhos na parede, bolinhos de areia
Fogãozinho mesinha cadeirinha
Tudo no diminutivo
Este diminutivo mais bonito da vida
Este diminutivo de encher os olhos.
E, de repente, o que resta?
A casinha fica no quintal,
Lembrança querida, um pouco triste.
Toda lembrança tem um quê de tristeza.
Ah, o tempo não pára nunca, não volta
Ficam as casinhas de boneca apodrecendo no tempo
Coisas que as meninas que brincaram nem conseguem lembrar
Lembra quem viu, quem visitou a menina em seu pequeno lar.
O tempo passa feito flecha embebida em licor e dor
E neste carrocel estamos quietos
Um pouco humanos, um pouco tristes,
De repente instantaneamente alegres.
A vida é esta coisa linda e filosófica
Vários mundos num só mundo, que é este, talvez único,
Tão mágico quanto o mundo que existe e que passa
Numa casinha de bonecas.


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Pensamentos de Beira de Estrada

Circundo este universo desgastado
Relembro
Desabo.
Esqueço do que tenho e do que sou
Ando,
Me entendo.
Nada além de mim eu compreendo,
Mas sigo,
Me acabo.
Nasço outra vez e outra vez
Transcendo,
Refaço.
Não há nada mais de sóbrio neste espaço
Nem este abraço
Que relembro novamente e assim de novo
Desabo,
Me acabo.


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segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Canção do Amor Calado

O que diria o mundo de um humano calado
ao entardecer, na varanda sentado,
sonhando, antes mesmo de poder dormir?

O que diria o mundo de um humano presente
e embora não conte, o pensamento ausente,
desenhando o barco pra depois fugir?

O que diria o mundo de um humano errante
que tem o coração por máquina pensante
e que somente pensa em nunca esmorecer?


O que diria o mundo de um humano sozinho
mas que vem sempre acompanhado em seu caminho
de uma lembrança impossível de esquecer?

O que diria o mundo de um humano perdido
que nos olhos mostra o coração ferido
implorando a cura para lhe salvar?

Eu diria ao mundo que este humano ama
e que sua alma, dependente, em chama,
voa para onde ele deseja estar.

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sábado, 16 de setembro de 2006

Numerologia

O número era aquele, eu tinha certeza
mas eu devo ter somado alguma coisa errada
devo ter esquecido de contar alguma coisa
um noves fora
uma raiz quadrada
porque era pra ser aquele o número do nosso pacto
era pra ser implacável e para sempre
talvez eu devesse ter contabilizado
o número do teu sapato
quatro mais dois noves fora seis
e isso mudaria completamente o nosso destino
porque eu tinha certeza, eu tinha certeza,
o número estava certo, tinha que ser
de uma vez por todas e nunca mais
e eu li todos os livros pra saber
o teu futuro e a cor da tua camisa
e o dia mais propício pra telefonar
eu fiz tudo certo, tudo direito
eu te amava e o nosso número era exato
era a tua dízima o meu número perfeito
e a linha do teu destino com a minha
dava casamento
mas eu acho que esqueci alguma coisa
e de repente a minha conta deu defeito
e deu ao nosso caso efeito inverso
era pra ter sido uma dízima periódica
que nunca tinha finalização
não era pra ser assim um número complexo
nem divisão por zero que não tinha solução
algo deu errado e eu assumo
é tudo culpa dessa minha distração.


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Amanhã

Um sopro do teu hálito se esvai
e me resta a poeira.
Remonto abstratos de versos
irrito meus olhos na busca
mas me distraio.

O teu nome não sabido me incita frases.
Discorro o dicionário em que ficas
e entitulo um poema.

Amanhã,
tu me dirás teu nome.

quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Do Desconcerto do Homem

Máquina do Sono
Desespero
Infalivelmente sensíveis
Inconfundíveis mamíferos
Mortais
Pontualidade enfadonha
Cálculos exatos
Matemática
Homem, um número.
Pensamento
Coração aberto
Peito enternecido
Fatalidade
Desejo,
Homem financeiro
Rarefeito
Animal pensante
Divisão
Cautela
Homem-inflação,
Dízima periódica
Esperança,
Profunda lembrança
Pesadelo
Dor no peito
Ferida na alma
Riso na face
Contraste
Lágrima nos olhos
Ferida na pele
Sonho no silêncio
Homem:
Desconcerto.


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quarta-feira, 13 de setembro de 2006

Mão Única

Andando pela via rápida
da minha memória
Eu tento desviar da triste história
que me corrói
Eu tento desviar a lágrima
a curva, a contramão
eu tento controlar meu coração
Eu tento, em vão.

E o que se há de falar que, enfim,
seja verdadeiro?
O que senão as vítimas fatais
que crescem em altos percentuais?
O que senão as mães desconsoladas
secando o choro em tristes almofadas?
O que senão as drásticas notícias
que mais parecem cenas fictícias?

A liberdade é este bicho esquivo e indomado
querendo dar a alguém a honra de domar.
Ah, esta honra precoce e momentânea
febre subcutânea
de repente um jardim, um anjo alado
de repente não há tempo pra voltar
de repente,
esta palavra imutavelmente instantânea.

A velocidade é sempre tentadora,
todo o perigo é um convite que enlaça.
Há uma adrenalina, um fogo, uma graça
e um inexplicável desejo de arriscar.
A vida, a matéria, a gravidade
todas estas grandezas cheias de legitimidade
tornam-se frágeis e simples de ultrapassar
a uma velocidade fascinante e assustadora.

Lembremos que esta vida é breve e cheia de cuidados
e o tempo, este tempo de pressa e ansiedade
necessita diminuir a velocidade.
Andamos em guerra, estamos armados
disparando no asfalto nossos tiros de morte
nas curvas sem volta, na inconsciência
apostando a vida num jogo de sorte
matando o que nos resta de inocência
nossos poucos anos, nossa pouca experiência
nosso pouco de tudo, nossos sonhos tantos,
que se vão também
para além dos prantos.

Deixemos os anos por conta da natureza,
não abreviemos a dádiva da vida.
A tragédia sempre se disfarça com destreza
é uma linda princesa
esperando alguém que lhe mexa na ferida.
Sejamos cautelosos, sejamos
presentes aos que nos amam.
As ruas todas, os motores, as corridas,
as madrugadas, as disputas, as bebidas,
não podem ser mais fortes nem maiores
que os sonhos que nos chamam.

O prazer de arriscar me parece uma túnica
pronta para ser usada como traje de gala.
Mas a dor da perda, a saudade, a falta que cala
serão para sempre uma estrada de mão única.

Epigrama fiel da Morte

A morte me atirou contra a parede e me fez sentir medo de dormir sozinha. A morte tem ar de desgraça e olha de cima para seus súditos. A morte traz na mão flores brancas e tem cheiro de incenso. A morte tem salas de espera nos hospitais e bips incansáveis nas UTIs. A morte acende velas nas tardes dos cemitérios enormes. A morte tem um minuto de silêncio antes dos jogos de futebol. A morte tem crianças assustadas vendo fantasmas pendurados na parede do quarto. A morte tem casas cheias e pede uma última bênção. A morte pode chegar irônica ou cheia de hipocrisia. A morte prega adesivos cadavéricos no pára-brisa dos carros. A morte vende álcool engarrafado com rótulos modernos e propagandas sedutoras. A morte tem lágrimas salgadas inevitáveis e duradouras. A morte tem procissões com cânticos ecumênicos que seguem os funerais pelas ruas da cidade. A morte inscreve belos epitáfios nas lápides e ensina que as pessoas estão in memorian. A morte promete anjos alados e escadas com luzes que não se apagam nunca. A morte faz alguém chamar você de derrotado num final de campeonato. A morte diz que é pouco o que você tem e lhe faz sentir inveja do seu melhor amigo. A morte põe comerciais de cigarro na TV e implora que você experimente. A morte veste as pessoas de preto. A morte finca um prego na sua mão. A morte sangra e grita na noite ou afoga o escolhido sem permitir palavra. A morte faz as pessoas se perdoarem. A morte põe uma 765 dentro do seu carro e quer lhe mostrar como funciona. A morte quer você nunca aceite um não como resposta. A morte deixa lembranças e fotos amareladas nos álbuns envelhecidos. A morte faz feriados nacionais e proclama heróis nos livros de história e dias santificados. A morte atirou um cantor de um avião e o mundo inteiro chorou. A morte esmagou meu cachorro e ninguém além de mim lembrou disso. A morte faz você pisar fundo no acelerador e ultrapassar a velocidade limitada. A morte diz que andar armado é necessário e politicamente correto. A morte ouve rock black no volume máximo no último andar depois da meia noite. A morta joga palitos acesos no carpete do seu apartamento. A morte distribui lindas bonecas aidéticas maquiadas com destreza e perfeição. A morte desmanchou o mendigo que morreu de fome no fim do subúrbio. A morte reinou na caatinga e depois viajou deixando apenas a poeira. A morte trafica cocaína e enriquece num piscar de olhos. A morte vende ecstasy e se diverte com a frenesi nas danceterias. A morte distribui sexo nos finais de festa e se encanta com a pulsação de cada minuto. A morte faz você pedir outra dose no balcão do bar e arranjar briga com um desconhecido. A morte abre cassinos com fachadas luminosas e joga pocker em apostas milionárias. A morte embaça a lente do seu óculos num dia de chuva. A morte mergulha além da área permitida para banho. A morte não ouve conselhos. A morte tira o parafuso da roda-gigante e tem ruas de mão única sem placas de sinalização. A morte danifica o freio do seu carro e faz você adormecer no volante. A morte vende pílulas que dão coragem e derretem artérias. A morte sempre aponta indícios de ausência da felicidade. A morte chega sem aviso e tem uma hora imprópria de chegar. A morte não falha nunca. A morte é implacável. A morte é Imortal.

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Poema por um tempo que não deixa o poema nascer

Há muitos anos trago um Poema dentro de mim.
Algumas rugas começam a nascer no meu rosto
e o colapso da vida me aparece nos olhos.
O poema não nasce.
Talvez, se a turbulência cessasse
se as borboletas voassem com maior brandura;
Talvez, se os motores todos se consumissem
e todas as vozes se calassem
nasceria então, talvez, o meu Poema.
Mas não há tempo para ele.
Ele sente o medo do século tenebroso,
das páginas amarelas que ninguém leu.
Eu penso
"Venha, meu querido Poema,
que talvez amanhã se esvaia meu último sopro de vida
e então, quem saberá que te gerei?"
Mas a minha própria presença ele teme.
Eu, que não sinto o ar puro em meus pulmões,
que me entreguei, devassa,
ao desarrumado cotidiano da modernidade.
Eu que não observo a forma das flores
que esqueço de olhar nos olhos
que passo pelos dias sem cantarolar uma cantiga
Eu que permeio de lamentos as palavras que eram livres
que esqueço o valor de um abraço,
sou eu quem o assombra, com tanta insensibilidade.
Agora percebo que preciso respirar de novo
e me descuido das nuvens negras, esqueço a noite
e desapercebo da tempestade desta grande evolução.
Agora eu penso que é preciso observar a forma das flores.
Agora eu tiro de mim um instante de silêncio
para que este Poema se liberte
e nasça, e viva fora de mim.

De Volta ao Reino

De repente a voz que faz tocar os sinos.
Na minha mão está o toque oculto que me chama a escrever
mas o toque não existe
e eu não insisto.
Para onde foram as minhas rimas, meu Senhor?
Sinto que estão voltando, preciso alimentá-las.

Acho que a fada que me dignifica
está do lado de fora da minha porta.
Me trás lírios, livros e dicionários,
e grita pelo meu nome.

Eu continuo neste quarto com as minhas quinquilharias
algumas palavras agora vão chegando,
um dia nascendo dentro de outro dia chuvoso.

Minha alma amanhece novamente.
Agora, sinto que estou mais forte
e já posso enfrentar as dores e torná-las poemas.
Me deixo transcender.

Poesia e Alguns Medos

Anoitece e cai o frio sobre os meus cílios
Implacável fortaleza que me abate.
A minha mente não tem armas pro combate,
Nascem os medos, invisíveis filhos.

Falta um minuto em meu relógio pra Poesia.
Falta a quietude, alimento nato.
Frente ao espelho é tão vazio o meu retrato;
E pr'os meu cantos, a noite mata o dia.

Minha lembrança é o motivo do meu pranto.
Tenho desejos de exaurir-me de repente
De transcender, como num breve encanto.

Mas a raiz se perpetua em minha mente.
Minha coragem se resume em canto
Uma envolvente, gélida serpente.

Vinte e Três

Vida viva
viva
mais um ano de vida
lívida

A moça entra na dança
A moça dança?
Roda rosa viva
mais um ano de vida

A moça não dança.

Olha, olha a roda
de dança, moça
vem pra roda
que a vida passa
a vida, mesmo lívida,
passa
então viva
mais um ano de vida
e vem pra roda
dança

A chuva cai na dança
e a moça não dança
a moça só olha a vida
que passa
pela janela
triste esfera
e procura a graça
da dança da vida
a roda de dança roda
e a vida da moça passa
e ela não diz viva a vida
ela não vê a vida viva
e a vida dança

Acende a vela do bolo!
Cadê o bolo da moça?
Acende a luz pra moça
encontrar o bolo
pra dizer viva viva
viva a vida

Canta, moça! Viva!
Encontra a tramela da vida!
Mas a vida não era dança?
Então agora é janela?
A vida é roda de dança
vista de uma janela
pra quem não entra na roda
e se a janela se fecha
vai a vida e nunca volta

Viva viva
mais um ano de vida

Alguém pra comer o bolo?
Cadê o bolo da moça?
A moça nem é mais moça
é vida não viva
vida de roda sem dança

Vida não viva
O que mais há na vida?
A moça, sendo tão moça,
não poderia ter a vida
mais vivida?

Viva a vida
Roda, rosa viva
a moça é mais viva
do que a rosa lívida
A moça entra na dança,
e a moça dança.

Dentro do olhos uma lança
mais viva
Dança moça, dança,
no teu pensamento.
Que a vida é mais dança,
e você,
rosa mais viva.

Vida vida, rosa lívida
Viva
mais um ano de vida.

Mãe na Varanda





Foi este vento que me fez te olhar assim.
Este vento soprando em teus cabelos poucos,
enxugando o suor do teu rosto.
Eu aqui, inerte,
te olho como quem visse um anjo:
contemplação.
Tu, no teu silêncio,
nem sequer imaginas que eu
(poeta com olhos da cor dos teus),
te elevo ao altar das divindades,
montado só pra ti no templo da memória.

Foi este vento que me fez te olhar assim.
Este vento livre como a tua bondade,
forte como a chama que alimentas.
Eu aqui, calada,
te digo muito mais que pronuncio:
Desolação.
Tu, na tua rotina,
vives tudo para dar a vida,
e a tua prece implora a nossa bênção.

Foi este vento que me fez te olhar assim.
Tu, forte como o tronco elevado;
Tu, grande como a Vida;
Tu, mãe que batalha na varanda.

O Poeta sem Poesia


O poeta fez um verso sem poesia.
Tudo o que tinha aquele verso eram palavras
que o poeta escreveu para se distrair.
Não tinha rimas
nem sonhos
apenas perdidos períodos gramaticais.

Mas, de repente,
o verso sem poesia que o poeta fez
virou poema.

sábado, 18 de fevereiro de 2006

Tudo o Mais

Jamais eu descansaria em paz
com o teu sonho dançando como um sonho
que ainda não virou realidade.

Porque de minha missão nada resta
que não permanecer ao teu lado
e ver teus olhos brilharem pela vitória.

Porque o teu sorriso me vem como um troféu
que cabe perfeitamente em minhas mãos,
nem demasiadamente leve e nem mais pesado.

Jamais eu escreverei o meu último poema
enquanto não houver feito em ti toda a alegria
que cabe no teu sonho grande e eterno.

Separação

Escuta aqui, dona Inspiração,
a senhora poderia conceder-me uma trégua?
Estou cansada, já não agüento mais
esta história de frases boiando pela minha cabeça.
Precisa mesmo ficar me dizendo o tempo todo
que um besouro ou um raio ou um bêbado
podem me render uma poesia?
Eu poderia por acaso ler o meu livro em paz
sem ficar pensando que seria aquele assunto
um ótimo poema?
Escuta, vamos dar um tempo,
que eu não consigo mais sustentar a nossa relação.
Eu não tenho tempo suficiente para toda esta atenção
e depois você fica aí, amuada,
quieta pelos cantos, emudecida,
querendo não atender o meu pedido quando eu preciso,
me deixando assim perdida à toa
Não, não pode ser,
isso só pode ser egoísmo de sua parte
O tempo todo, o tempo todo,
sem me deixar escovar os dentes sossegada!
Então podemos fazer assim:
eu me sento no chão, com papel e caneta,
e vem a senhora com a sua palmatória,
e fazemos um lindo ditado com todas estas frases
que agora estão aqui dançando e dançando e dançando
e deixo meus afazeres por sua conta
eu largo tudo, me sento abandonada aos seus pés.
É isso que deseja, senhora ameaçadora,
jogando estas palavras como quem diz
“pegue-as agora ou vou jogá-las fora,
vou apagá-las para sempre
vou fazer delas borboletas mortas”?
Estou extenuada, mórbida, sonolenta,
vamos dar um tempo, vamos dar um tempo até amanhã
e então a gente volta a conversar
porque agora estou farta, zonza, rebelde,
não quero mais discutir a nossa relação.

Best Seller

A minha inquietude é sempre crucial
o que fazer para que tudo seja perfeito
o trabalho, a comida, a sobremesa,
o sexo, o sorriso, o cafuné
o texto, a canção, a paciência
tudo aquilo que deve ser perfeito
e mais ainda, e além de tudo
o que fazer para ser perfeita
a minha poesia?
Teia de aranha na folha branca
tecida, tecida,
sob profundo perfeccionismo
será perfeita?
A minha dúvida é terrível e ameaçadora
espelho, espelho meu,
haverá poeta mais sentimental e tolo
do que eu?
Não pode ser
não deve haver
porque, veja bem,
a minha poesia é uma coisa assim que tanto me apraz
eu, fã de mim mesma,
que me desmancho em ler e reler
e me pergunto por quê não?
A dúvida é iminente e mesmo assim
por quê não?
Escuta, Deus, por quê não?
Então me inspire a palavra certa
e ponha na minha mão um plim de varinha mágica
e faz nascer aqui na minha ilusória perfeição
um Best Seller

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Ensaio pelas rosas que caem

Tenho saudades de ti,
de tudo o que ainda não fiz.
Tomar a tua mão e te guiar pelo campo
à beira do rio, olhar o céu e não pensar em nada
mas sentir que estás feliz

Tenho saudades de ti,
de tudo o que ainda não disse.
De como me tornas assim tão poeta
de quanto quisera acalentar teu sono
como se nada mais existisse

Tenho saudades de ti,
de tudo o que ainda não sei.
Do mistério na amplitude do que sinto,
do incompreensível desejo no que dizes,
de cada verso livre que te dei

Tenho saudades de ti,
de tudo o que ainda é obscuro.
Te trazer comigo, te mostrar meu mundo
o céu, a terra, o verde, a poesia,
o meu amor, e tudo o mais que é puro

Uma Mulher

Uma mulher quieta em frente ao espelho
se põe bonita
observa a roupa, a cintura,
amarra uma fita
no cabelo.
Uma mulher sente o ego vivo
em frente ao espelho
lápis nos olhos
um pouco de batom vermelho
nada demasiadamente chamativo.
Uma mulher exageradamente discreta
se sente perfeita
escolhe um perfume, ajeita
sua postura
tudo para parecer correta
e talvez um pouco aventureira.
Uma mulher quer um braço que a receba
e tem uma pressa infinita.
Toda mulher quando se põe bonita
espera por um homem que a perceba.

O Retrato

Ai, dentro dos teus olhos no retrato
eu busco toda a minha temperança
eu acalmo a dor e ansiedade
eu mergulho bruscamente na lembrança
eu respiro esta saudade que me invade
eu te imagino inteiro, exato.

Ai que de toda esta agonia
há de tornar maior o amor que sinto
há de tornar mais vivo, mais sensato
há de fazer mais forte, mais sucinto
há de fazer mais breve a travessia
deste tempo de ausência, em que me vejo
entre o amor e a saudade e o desejo
deliciosamente olhando o teu retrato.

Ai que venha logo o dia de ver-te
pra cair enfim no teu abraço.
Quero ouvir o timbre do teu passo
olhar teus olhos mais profundamente
e em nome santo hei de jurar solenemente
que para a eternidade hei de querer-te.

Ai, um dia hei de vencer o tempo ingrato
e não mais chorar, não por tristeza
hei de ter mais riso, mais leveza
hei de ter enfim a tua beleza
ao meu alcance, não mais neste retrato.

Haeresis

Fui buscar minhas rimas com o Senhor Inquisidor.
Estavam apreendidas no calabouço,
úmidas, mofadas, completamente à mercê das paredes infectadas
acorrentadas, torturadas porque não confessavam sua culpa.
Foram capturadas enquanto falavam de liberdade.
As minhas rimas eram doces meninas que brincavam inocentemente
e foram acusadas de infringir a lei
pobres meninas diabólicas e tolas
hereges, pecadoras, mantidas incomunicáveis.

Oh, tanto sofri sem as minhas meninas!
Iriam acender a fogueira, avisaram-nas,
e elas, insontes, calaram-se de repente
e se lavaram de pranto e murcharam silenciosamente.

“Levarei as meninas!”, eu disse ao Inquisidor.
Arrebatei suas chaves e abri as portas
abjurei-o por caluniar minhas pobres crianças
peguei-as ao colo, sujas, sonolentas,
levei-as para casa, ensinei-lhes a lição,
e lhes abençoei com a eternidade.
“Cada coisa no seu tempo, minhas meninas.
Sejam eternas e venham depois de mim,
fiquem quietas para não despertar o Inquisidor,
e um dia enfim, quando vier o amanhã,
contem para todos o que é a Liberdade.”
Vamos aguardar o amanhã.
Por enquanto, podemos ser flagrados pelo Inquisidor.

* Grego. Heresia: escolha, escola filosófica.

Efeito de Delícia

Nós sempre temos vontade de uns poemas
que não temos coragem de escrever.
Porque temos essa ânsia louca pelo impuro
esse sangue quente nas veias
Temos sempre vontade de ler umas palavras
cio, ardência, obsceno, beijo na boca
umas palavras que ficam escondidas
porque têm medo da tenebrosa censura.

Agora não existe censura.
O cio esta à tona
deliciosamente escorrendo pelas palavras.
Tem sabor de mel, de hortelã
qualquer um destes prazeres comuns do paladar
Tem cheiro de jasmim, de comida no fogo
tem uma sensação incompreensível de desejo
põe neste poema um efeito de delícia.

Casinha de Bonecas

Quer exemplo maior da rapidez da vida
Do que uma casinha de bonecas no quintal?
E o que havia ali?
Ontem, um ontem bem próximo,
Havia ali um ruído quase insuportável
Vozes demasiadamente aceleradas
Vem aqui, sai dali, que linda sua boneca!
Quadrinhos na parede, bolinhos de areia
Fogãozinho mesinha cadeirinha
Tudo no diminutivo
Este diminutivo mais bonito da vida
Este diminutivo de encher os olhos.
E de repente o que resta?
A casinha fica no quintal,
Lembrança querida, um pouco triste.
Toda lembrança tem um quê de tristeza.
Ah, o tempo não pára nunca, não volta
Ficam as casinhas de boneca apodrecendo no tempo
Coisas que as meninas que brincaram nem conseguem lembrar
Lembra quem viu, quem visitou a menina em seu pequeno lar.
O tempo passa feito flecha embebida em licor e dor
E neste carrocel estamos quietos
Um pouco humanos, um pouco tristes,
De repente instantaneamente alegres.
A vida é esta coisa linda e filosófica
Vários mundos num só mundo, que é este, talvez único,
Tão mágico quanto o mundo que existe e que passa
Numa casinha de bonecas.

Belos Dias

Há dias em que me sinto especialmente apaixonada.
Dias em que os teus olhos brilham mais
ou em que os meus se refletem mais nos teus.
Dias em que o teu sorriso está mais ameno,
em que te sinto criança
completamente à mercê dos meus cuidados.
Há dias em que me sinto mãe
tua mulher, tua amiga, tua criança, tua filha.
Dias em que faria tudo pelo teu abraço,
e o teu abraço vem, na brincadeira,
o meu infante, meu menino frágil
tua alma desabrochando em câmera lenta.
Há dias como este, em que me refugio,
porque preciso registrar o meu amor.
O meu amor é tanto que sinto medo
de assustar-te, que alces vôo da minha mão.
Há dias em que me ilumino na tua presença.Nestes dias, compreendo a grande bênção que ganhei

A Mão

Chovia, eu assim praticamente nua
escorrendo em mim a chuva pela rua
caída, expressiva dor na minha face
Nenhuma outra dor e nenhum disfarce
jamais pareceria tão cruel
Mas ele tinha mel,
me deu a mão como quem mata a fome
e, meu Deus!
Ele parecia um homem.