sábado, 10 de maio de 2008

Uma luz que tive

Tinha a pele macia e de um leve bronzeado permanente. Tinha a forma humana. Na altura dos ombros, desciam-lhe uns cabelos negros, alinhados, ora ornados de algum enfeito daqueles comuns às menininhas. Era uma menininha. E acreditava num anjo da guarda.

O que mais me lembro são os olhos que tinha. Eram uns olhos pequenos, escuros, as sobrancelhas torneadas, e tinham um brilho... ah! um brilho! Tinham uma luz.

Apareceu-me numa daquelas época da vida em que tudo o que se faz é o que não se queria fazer, quando se é jogado como um dado, ao acaso. E deu, no resultado dos dados, as duas faces seis. Era a jogada máxima; foi assim que a pequena luz entrou na minha vida.

Quando se apagavam as minhas luzes - da rua, do quarto, da alma - ela conseguia reacendê-las, todas, com uma palavra. E ela nem sabia que as acendia. Era sua varinha mágica, de fada morena; era a vontade que tinha de fazer que o mundo estivesse sempre iluminado.

Dizia-me das dores e dos caos interiores. Eu não tinha luz para lhe dar, mas podia, quando possível, entregar-lhe um abraço com umas palavras e uns suspiros - "amiga querida!"

Os Verões eram nossas épocas preferidas. Nos verões, captávamos luz do céu, do reflexo das águas que achávamos por perto, dos copos de coca-cola, dos vidros das vitrines. Usávamos roupas coloridas e acessórios, alguns que ela mesma idealizava. Fazíamos pequenas festas íntimas com humildes comes e bebes, chás muito doces, pipocas. Fazíamos a lista do próximo acampamento. E para os invernos, para que não nos deixássemos abater por completo, tramávamos filmes, sopas e vinhos.

Mas os verões eram mesmo a nossa morada. Nos verões éramos felizes, tínhamos histórias, risos e fotografias. Tínhamos planos, ondas de mar, areia e uma pousada aconchegante. Nos verões sim, nós éramos nós.

No início dos verões, ela sempre me vinha com umas idéias novas, umas revistas de arte, uns cursos novos que encontrara em algum lugar, umas pedrarias. Quando a distância nos separava, eram umas fotos que iam de um lado para o outro, mostrando as coisas novas que aprenderamos, trocando idéias, elogios e experiências.

Quando tínhamos uma dor no coração, a outra dizia sempre: "logo passa!" Quando tínhamos idéias contrárias, brigávamos heróicamente, com direito à mágoas passageiras que sempre resultavam num lindo pedido de desculpas.

No início do último verão, ela me deixou. Foi arrancada como uma planta florescida, ainda cheia de cor e perfume. Eu não pude ver o último brilho que saiu de seus olhos infantis. Eu não pude dizer que foi tão tola a nossa última briga heróica, nem dizer a ela, como dizíamos: "logo passa!" E foi porque, daquela vez, não passou.

Desde aquele dia, não houve nenhuma luz que me pudesse acender. A luz externa é artificial, não é como aquela que tínhamos outrora. É possível que tenha sido ela a única luz de toda a minha vida; e sinto que, talvez, seja provável.

Quando chegar o início do próximo verão, eu sei que chorarei o aniversário de sua perda. As fotografias todas que ficaram aqui, registrando as alegrias de todos os verões, não serão nunca igualadas. Eu tenho agora uma dor escondida, uma escuridão, algumas olheiras e muitas revoltas. E uma vontade de correr sem rumo pelo mundo. Correr, correr, correr.

O breve instante de uma despedida talvez dure uma vida inteira. O breve ato que apaga uma luz que morre talvez apague para sempre outras luzes que vivem. Tinha uns olhos pequenos, um sorriso imenso, um coração de criança que defende a vida a todo custo. Uma criança que perdoa. O nome dela quase rimava com um verbo forte, no imperativo afirmativo: AME!

Agora estamos no inverno, com sopas, filmes e vinhos. E a taça que ela gostava de usar será para sempre a taça que ela gostava de usar. Todos os sabores habituais ganharam um tempero que se chama "lembrança dela".

Agora estamos no inverno, e todas as luzes ficam mais ofuscadas.
"Não fique assim, amiga! Logo, passa!..."