segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Ensaio pelas rosas que caem

Tenho saudades de ti,
de tudo o que ainda não fiz.
Tomar a tua mão e te guiar pelo campo
à beira do rio, olhar o céu e não pensar em nada
mas sentir que estás feliz

Tenho saudades de ti,
de tudo o que ainda não disse.
De como me tornas assim tão poeta
de quanto quisera acalentar teu sono
como se nada mais existisse

Tenho saudades de ti,
de tudo o que ainda não sei.
Do mistério na amplitude do que sinto,
do incompreensível desejo no que dizes,
de cada verso livre que te dei

Tenho saudades de ti,
de tudo o que ainda é obscuro.
Te trazer comigo, te mostrar meu mundo
o céu, a terra, o verde, a poesia,
o meu amor, e tudo o mais que é puro

Uma Mulher

Uma mulher quieta em frente ao espelho
se põe bonita
observa a roupa, a cintura,
amarra uma fita
no cabelo.
Uma mulher sente o ego vivo
em frente ao espelho
lápis nos olhos
um pouco de batom vermelho
nada demasiadamente chamativo.
Uma mulher exageradamente discreta
se sente perfeita
escolhe um perfume, ajeita
sua postura
tudo para parecer correta
e talvez um pouco aventureira.
Uma mulher quer um braço que a receba
e tem uma pressa infinita.
Toda mulher quando se põe bonita
espera por um homem que a perceba.

O Retrato

Ai, dentro dos teus olhos no retrato
eu busco toda a minha temperança
eu acalmo a dor e ansiedade
eu mergulho bruscamente na lembrança
eu respiro esta saudade que me invade
eu te imagino inteiro, exato.

Ai que de toda esta agonia
há de tornar maior o amor que sinto
há de tornar mais vivo, mais sensato
há de fazer mais forte, mais sucinto
há de fazer mais breve a travessia
deste tempo de ausência, em que me vejo
entre o amor e a saudade e o desejo
deliciosamente olhando o teu retrato.

Ai que venha logo o dia de ver-te
pra cair enfim no teu abraço.
Quero ouvir o timbre do teu passo
olhar teus olhos mais profundamente
e em nome santo hei de jurar solenemente
que para a eternidade hei de querer-te.

Ai, um dia hei de vencer o tempo ingrato
e não mais chorar, não por tristeza
hei de ter mais riso, mais leveza
hei de ter enfim a tua beleza
ao meu alcance, não mais neste retrato.

Haeresis

Fui buscar minhas rimas com o Senhor Inquisidor.
Estavam apreendidas no calabouço,
úmidas, mofadas, completamente à mercê das paredes infectadas
acorrentadas, torturadas porque não confessavam sua culpa.
Foram capturadas enquanto falavam de liberdade.
As minhas rimas eram doces meninas que brincavam inocentemente
e foram acusadas de infringir a lei
pobres meninas diabólicas e tolas
hereges, pecadoras, mantidas incomunicáveis.

Oh, tanto sofri sem as minhas meninas!
Iriam acender a fogueira, avisaram-nas,
e elas, insontes, calaram-se de repente
e se lavaram de pranto e murcharam silenciosamente.

“Levarei as meninas!”, eu disse ao Inquisidor.
Arrebatei suas chaves e abri as portas
abjurei-o por caluniar minhas pobres crianças
peguei-as ao colo, sujas, sonolentas,
levei-as para casa, ensinei-lhes a lição,
e lhes abençoei com a eternidade.
“Cada coisa no seu tempo, minhas meninas.
Sejam eternas e venham depois de mim,
fiquem quietas para não despertar o Inquisidor,
e um dia enfim, quando vier o amanhã,
contem para todos o que é a Liberdade.”
Vamos aguardar o amanhã.
Por enquanto, podemos ser flagrados pelo Inquisidor.

* Grego. Heresia: escolha, escola filosófica.

Efeito de Delícia

Nós sempre temos vontade de uns poemas
que não temos coragem de escrever.
Porque temos essa ânsia louca pelo impuro
esse sangue quente nas veias
Temos sempre vontade de ler umas palavras
cio, ardência, obsceno, beijo na boca
umas palavras que ficam escondidas
porque têm medo da tenebrosa censura.

Agora não existe censura.
O cio esta à tona
deliciosamente escorrendo pelas palavras.
Tem sabor de mel, de hortelã
qualquer um destes prazeres comuns do paladar
Tem cheiro de jasmim, de comida no fogo
tem uma sensação incompreensível de desejo
põe neste poema um efeito de delícia.

Casinha de Bonecas

Quer exemplo maior da rapidez da vida
Do que uma casinha de bonecas no quintal?
E o que havia ali?
Ontem, um ontem bem próximo,
Havia ali um ruído quase insuportável
Vozes demasiadamente aceleradas
Vem aqui, sai dali, que linda sua boneca!
Quadrinhos na parede, bolinhos de areia
Fogãozinho mesinha cadeirinha
Tudo no diminutivo
Este diminutivo mais bonito da vida
Este diminutivo de encher os olhos.
E de repente o que resta?
A casinha fica no quintal,
Lembrança querida, um pouco triste.
Toda lembrança tem um quê de tristeza.
Ah, o tempo não pára nunca, não volta
Ficam as casinhas de boneca apodrecendo no tempo
Coisas que as meninas que brincaram nem conseguem lembrar
Lembra quem viu, quem visitou a menina em seu pequeno lar.
O tempo passa feito flecha embebida em licor e dor
E neste carrocel estamos quietos
Um pouco humanos, um pouco tristes,
De repente instantaneamente alegres.
A vida é esta coisa linda e filosófica
Vários mundos num só mundo, que é este, talvez único,
Tão mágico quanto o mundo que existe e que passa
Numa casinha de bonecas.

Belos Dias

Há dias em que me sinto especialmente apaixonada.
Dias em que os teus olhos brilham mais
ou em que os meus se refletem mais nos teus.
Dias em que o teu sorriso está mais ameno,
em que te sinto criança
completamente à mercê dos meus cuidados.
Há dias em que me sinto mãe
tua mulher, tua amiga, tua criança, tua filha.
Dias em que faria tudo pelo teu abraço,
e o teu abraço vem, na brincadeira,
o meu infante, meu menino frágil
tua alma desabrochando em câmera lenta.
Há dias como este, em que me refugio,
porque preciso registrar o meu amor.
O meu amor é tanto que sinto medo
de assustar-te, que alces vôo da minha mão.
Há dias em que me ilumino na tua presença.Nestes dias, compreendo a grande bênção que ganhei

A Mão

Chovia, eu assim praticamente nua
escorrendo em mim a chuva pela rua
caída, expressiva dor na minha face
Nenhuma outra dor e nenhum disfarce
jamais pareceria tão cruel
Mas ele tinha mel,
me deu a mão como quem mata a fome
e, meu Deus!
Ele parecia um homem.