segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Cacos de vidro

Esse corte é tão fundo, dói tanto
Fez ferida, dessas que a cicatriz
nunca apaga
contraiu minhas mãos, que nem se abrem
secou meus argumentos,
calou-me a voz
escureceu a cor do meu olhar
me deu medo
Eu não sei como se faz parar
se os pedaços quebrados se espalham
e nos cortam mais, e mais, e mais
derramam nosso sangue,
tiram-nos a força
E se acordasse, de repente,
no meio do pesadelo?
Fico em silêncio, nem entendo o que diz
meu próprio coração.




terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Sinos do temporal

Quando soaram os primeiros sinos
o temporal se anunciava
O céu escuro, longe a luz que cortava o céu
nuvens pesadas passavam rapidamente
nascia a noite no dia
O vento forte batia
a face, as árvores, as portas
que estavam abertas
- feche as portas! eu gritei
tentei avisar

Ainda levou tempo até que o vendaval
nos arremessasse
nos quebrasse os punhos, 
nos trouxesse tanta areia aos olhos
invadisse a casa, arrombasse as portas
fizesse voar pedras e papéis
trouxesse o temporal, 
fizesse molhar nossos tesouros

Eu tentei avisar, era iminente
o risco de desabar
Minha voz não foi forte o suficiente
nem clara o suficiente
nem suficientemente sóbria para ser
acreditável.







sábado, 17 de dezembro de 2016

Obra perfeita

Você demorou tanto, não entendi
por que veio tão tarde
a vida escrita, a mesa posta, 
tudo consumido
quando toca, abro a porta
da vida
você, exato, vigoroso
atrasou demais, tanto, chegou então
deixou tão confusos meus olhos
mas tudo está claro 
- que o motivo do atraso, meu bem,
é a perfeição
do seu entalhe








sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Declaração

Trouxe para ti tantas palavras
que, por te querer bem,
não direi assim.
Não quero que te afogues.
É melhor que diga aos poucos, e baixo,
para que as receba suaves
despidas da minha ansiedade.
Quem sabe nem as diga.
Quem sabe apenas guarde
assim, amarrotadas,
acumuladas na caixa do bem-querer
e da saudade;
protegidas, para que não se percam,
valiosas que são,
cheias de vida, de medos,
de observação,
de encantamento.



quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Transcendental

Se eu pudesse escolher
entre ir e ficar
eu iria
nem mais voltar eu queria
ser pó, água, ar
ser coisa qualquer
menos dor

A arte de viver
nenhuma teoria
ensina a compreender.





segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Telefone

É ele, será que é ele,
bem que podia ser ele
Era qualquer coisa
menos ele
Solto o ar que estava preso
recolho meu sorriso
piso no chão
prossigo.



segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Implanejável

O nosso encontro não é algo que possa acontecer
nos parques
sentar, ver o céu, tecer
singelos comentários sobre a vida.
Nem entre paredes.
Nem é algo que requeira palavras
que sobrariam, inúteis,
absolutamente desnecessárias.
Porque não se planejam furacões,
dilúvios, vendavais
nem encontros de tamanha intensidade.
Não podem ser contidos.

Não falemos a respeito
e que nos proteja
nosso silêncio.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Da cor do sangue

Decidi, pintei as unhas de vermelho
mudei a direção, os cabelos
parei o mundo, tirei o salto
desci
impetuosa como sempre

Não sei ser leve, eu tento
isso de ser pérola
mas sou assim, inteira rubra
sanguínea, intempestiva
naturalmente descoordenada.





sábado, 3 de dezembro de 2016

Perfil

Eu sou aquele tipo de mulher difícil
que gosta do café sem açúcar
dos trovões,  dos temporais
pinto as unhas de preto, azul, 
de vermelho
ando descalça, na terra,
faço tatuagens

Do tipo fissurado na dieta,
na silhueta
faz foto nua na frente do espelho
Acordo pequena, descabelada
cresço depois, floresço, me visto
como quiser, se quiser,
para quem quiser

O tipo que vira o dia num roupão
atirada ao mundo
sacode a poeira, veste um top, 
um short curto
pinta os olhos de preto
liga um som, não chora mais,
canta até acabar a voz

Sou daquele tipo duro de lidar
te amo hoje, não te amo mais
me desafie e te amo outra vez
Sou possessiva, dominadora
mas me encanta a possibilidade de ser 
frágil

Ah, meu bem,
eu sou do tipo que se derrete com as flores
que chora vendo um filme, lendo um livro
Sou doce assim, às vezes, quando muda a lua
romântica até
mas se apertar você vai ver que tenho espinhos
e o meu braço
não suporta as amarras comuns a tantas bodas
Toco meu violão, estudo, sou louca por ciência
e inteligência é coisa que me excita
mas não se engane, sou do tipo que saca
todos os discursos decorados

Eu sou do tipo que ama o precipício
o perigo da onda na pedra,
e a arte da ser inteligível
Amo as palavras, as rimas
e minha poesia
sempre terá certa obscenidade

Ah, sou aquele tipo complicado
que tem a liberdade correndo na veia
tem a alma toda colorida
pintada num papel de fundo escuro

não se engane comigo, meu bem, não se descuide
mantenha distância, eu aviso
é mais seguro.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Consumação

Deixe que tudo me toque
Toque-me então
Me provoque
Só até girar
até que se consuma
nosso secreto estoque.



quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Voo alto

Essa sinfonia quando toca implacável
vem devastadora
põe o ventre frio, arrepio
o peito infla, arfa, nem mais respira
braços abertos, olhos para o céu
no ponto mais alto do precipício
Um passo à frente, outro passo mais
corpo pendido ao infinito
olhos cerrados, braços são asas

Não convém explicar, não convém
é só libertação, deixar pulsar 
ao som da melodia
Erga o volume, toque mais forte
não pare o som, não deixe
meu pulso se acalmar
empurre logo, empurre firme
estou a um passo
deixe-me voar.


terça-feira, 29 de novembro de 2016

Inundação

Recebe as palavras
sacode, uma a uma,
na boca, no pensamento,
fôlego alterado
degusta, sente salivar

Então abre os olhos,
o mundo é o mesmo mundo
de palavras que não podem ser ditas
e as engole, com dor, afoga-se
nessas palavras
proibidas, livres, instintivas
tão cheias de verdade
tão perigosamente perturbadoras.

domingo, 27 de novembro de 2016

Umidade

Chove, impetuoso e quente,
dentro de mim.
Tão quente que me derrete.
Chove e me lava, escorre em minhas frestas
deliciosamente aquecida.
Me queima as veias,
me derruba as pétalas
me transforma, tira-me o orvalho,
absurdamente úmida
inconfundivelmente feminina.


domingo, 6 de novembro de 2016

Aquarelável

Acordei tão azul,
tão sem nuvens,
me pintei de vermelho
e você, que nem tem cor,
me roubou o pincel, me amarelou
misturou tudo, sugou a luz
ficou escuro, me pôs no colo
me adormeceu, assim,
descolorida.



Gratidão

Eu só queria mesmo agradecer
você, que nem supõe,
me acendeu tanta coisa
que me fez assim, chama viva
queimando a mim, e tudo, e tanto,
que nem posso esconder
nem minha luz
nem minhas cinzas.




Bomba-relógio

Não é o clichê, a trama cinematográfica
não tem tumulto, burburinho,
som de tic-tac 
tudo é silêncio, é profundo,
escuro, ou tão desastrosamente colorido
que talvez pareça disfarce
e talvez seja
É a quietude perigosa
como se houvesse controle
e não há, talvez nem haja tempo
de desarmar
Dentro dos olhos, meu bem,
é onde mora o perigo.




segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A mesma língua

Suspeito que falamos a mesma língua,
você e eu.
Que talvez tenhamos a mesma
profundidade.
Que tocamos a mesma nota e,
quem sabe,
se nos tocássemos,
seria irretocável o tom.
É uma suspeita.
Que a língua que falamos
se reconhece
sem mais traduções
Assim igualmente clara,
assim limpa, sem deturpações
igualmente macia
quente, silenciosamente
suspeita.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Cápsula do tempo

Você, detrás desse silêncio,
me trouxe a poesia
veio até a rima, veja que ironia
e sem dizer palavra
falou de tantas coisas esquecidas
daquilo que adormecia 
Você me trouxe mais, 
nessa distância
sorrindo pelos olhos calmamente
trouxe a fantasia, o verso quente
e úmido, de coisas imorais
Ah, você me trouxe tanto
me fez a corda tensa, um canto
um tanto que me afrouxa
e que me amarra, que vai ficar
para sempre
ao menos aqui, na poesia
se não no que se toca
fisicamente



Patrícia Moresco

Debaixo dos pés do abismo

(2002)

Alguns rastros ficam na poeira sem que ninguém
veja quem os fez
Mas os rastros permanecem e já foram passos de alguém

Há no escuro um cheiro que diminui
o medo que se fez
Mas a alma engatilhada dispara e a máscara cai

Não importa se apague a lâmpada incandescente
que ontem acendemos
Uma lágrima que acende não se apaga facilmente

Alguns rastros não se deixam apagar e na poeira
ficam bem marcados
E nem o vento impetuoso desfaz a dor primeira.





Antítese

(2002)

Não eras nada, e eras tudo que eu tinha.
Vinhas com medo, e com o mesmo medo eu vinha.
Quando parei,
o meu olhar te vislumbrou, inteiro
e o teu gesto, ligeiro,
roubou o antigo mundo que sonhei.

Não eras nada, e eras tudo que eu tinha.
E tenho ainda, e a tua solidão é minha.
Enquanto esperei,
o vento trouxe a mim teu cheiro.
E o mundo, faceiro,
fez brotar o plano que eu te dei.

Não eras nada, e eras tudo que eu tinha.
E sem teu colo estou aqui, sozinha.
Enquanto eu sonhei,
a minha alma despertou primeiro.
E o sonho, verdadeiro,
fez doar-te o pouco que guardei.

Motivo

(2002)

Tu és como a face das flores:
tens perfume e desabrochas sempre
não importa se tens dor ou alegria.
E eu, que tenho medo deste teu perfume,
oculto o medo em meio à poesia.

Tu és como a onda nos mares:
teu movimento é diferente sempre
mas tens no peito a mesma busca intensa.
E eu, que tenho medo dessa maresia,
oculto o medo em meio à desavença.

Tu és como a areia das praias:
vais e retornas com as ondas sempre,
mas é por ti que a praia inteira existe.
E eu, que tenho medo desse itinerário,
oculto o medo num poema triste.

Tu és como a ave nos ventos:
podes cortar o céu tão livre, sempre,
mas tens apego à lassidão do ninho.
E eu, que tenho medo dessa calmaria,
oculto o medo em meu pulsar sozinho.


Sublimação

(2001)

Talvez seja só fantasia. Seria?
A tua boca aspirou o meu suspiro,
e alimentou meus delírios.
De repente,
já não somos nós.
Somos abstratos, nos ermos do sonho,
onde nosso prazer é a nossa paz.
Não existimos aqui,
nem em lugar algum deste mundo
Somente amamos
- é para isso que estamos aqui.

Um segundo e somos adormecidos,
figuras lendárias de um conto de fadas.
E estamos leves,
leves.

Mais uma vez

(2001)

Deliro no meu inconsciente,
renasço no abraço que não me envolve mais.
Transpiro, mais do que respiro,
quando penso em não pensar.
Onde está a chave do cofre do sem pensamento?
Mais uma vez, não ouço resposta.
Então me calo,
ouço apenas o ruído da lembrança.


Contemplação

Seria assim o meu olhar se te deixassem aí
sentado, no banco vago diante de mim:
um olhar profundo de perdão,
de lágrima e de soluço,
e de silêncio.
Eu te olharia como se entregasse o sonho,
como se jogasse flores,
e teria nos olhos os beijos que não te dei.
Se te pusessem aí, diante de mim,
este banco vago seria o teu altar
e eu daqui te louvaria, te louvaria.
O meu olhar para ti seria insano
e eu te contemplaria até o meu último segundo.

Talvez o meu olhar compreendesse a tua ausência.




[Publicado no livro Absoluta - Contos, Crônicas e Poesias, 2013]
Patrícia Moresco

Notas

(2001)

Teus cabelos ficaram presos na porta depois
da tua partida:
foi o meu castigo por ter te pedido a ausência.

E tinham perfume os teus cabelos!
E o ar impregnado de hoje restitui aqui
a tua presença
te deixando sempre detrás da porta fechada.

Tua presença hoje é como o fio do teu cabelo:
real e perfumada, mas solta da raiz.



Tudo bem, meu bem

(2000)

Tudo bem, tá tudo bem
amanheceu e estou tão bem
cantei uma canção velha demais
e me deu uma paz
Tudo bem, tá tudo certo
você me trata com respeito
eu fico assim meio sem jeito
(é que você me deixa tonta)
você me apronta e tudo bem
Tá tudo em cima
quase perdi o fio da rima
mas já estou aqui assoviando
mosca flutuando
tô aqui meio sonhando
é que a noite chegou
você me transformou
e tudo bem, tá tudo bem
Você me chama de meu bem
e tudo bem, tá tudo certo
eu sei que você está por perto
e eu curtindo essa loucura
você me procura
e eu cantando, eu tão bem
o dia passa, a noite vem
você assim ousado e moço
suspirou no meu pescoço
e me deixou maluca
Você ficou na minha nuca
e tudo bem, tá tudo bem
você já sabe que me tem
eu não me deixo parecer
mas você sabe perceber
Você chegando, eu te desejo
você me dá um beijo
eu nem te vejo
e você já me levou embora
não tem mais hora
pra gente acontecer
e depois eu fico aqui cantarolando
você aí zoando
Você abusa dessa minha embriaguez
a vai chegando
e eu desabo de vez
Você aposta que eu não sou tão forte
(a tua certeza é a minha sorte)
e tudo bem, tá tudo bem
eu sei que você vem
você me faz ficar tão zén
que me deleito nessa anestesia

Você sabe que me tem, e você vem
então tá tudo bem, meu bem.

Isto

(2001)

Isto, que me faz infante,
é o amor
que me torna errante
que me consome

O amor é isso
que me maltrata
que me traz à vida
e depois me mata

Isto, que me tira o sono,
é o amor que sinto
A saudade é um abandono
absinto

O amor é isso
que me traz enleio
que me acerta em cheio
com o teu sorriso

Isto, que me fascina
quer te recolher
quer teu corpo, homem,
no meu corpo de mulher.

Ritual

Era segunda-feira o dia
da estripulia
de recompor a ordem de antes do domingo
mas ela, a mulher
tinha um compromisso
na agenda da cabeça
um caso quase omisso
largou o avental, o espanador
precisava relembrar o seu valor
a roupa ficou no tanque, a louça
se pôs mais moça
num vestido justo
pintou os lábios, os olhos
um lindo penteado feito a muito custo
um pouco de pó na face
sentia crescer um fogo, um sonho
naquele impasse
de não saber se era correto o que fazia
o que queria
a delicada sensação de ser admirada
de salto alto, as pernas depiladas
como fazem as mulheres naquelas cenas
obscenas
e no silêncio do seu quarto deserto
o encontro acontece
os olhos percorrem vagarosamente
a cabeça aos pés
Você está linda neste vestido vermelho
a cor da sua pele, o seu cabelo
você ainda está tão moça
e o seu sorriso ainda é o mais belo
É uma mulher simpática, fatal
que cumpre o secreto ritual
de uma mulher sozinha vestida de vermelho
a se olhar no espelho.


[Publicado em Absoluta - Contos, Crônicas e Poesias, 2013]

domingo, 2 de outubro de 2016

Cápsula do tempo

Você, detrás desse silêncio,
me trouxe a poesia
veio até a rima, veja que ironia
e sem dizer palavra
falou de tantas coisas esquecidas
daquilo que adormecia 
Você me trouxe mais, 
nessa distância
sorrindo pelos olhos calmamente
trouxe a fantasia, o verso quente
e úmido, de coisas imorais
Ah, você me trouxe tanto
me fez a corda tensa, um canto
um tanto que me afrouxa
e que me amarra, que vai ficar
para sempre
ao menos aqui, na poesia
se não no que se toca
fisicamente




Águias

Essa coisa de ser livre
só no pensamento
é que vive

Não espero ter asas.
Pensar faz do infinito
minha casa.


sábado, 1 de outubro de 2016

Se fosse verdade

Eu sei que você sabe
isso tudo é cheio de verdade
a lente não engana, e tem o cheiro
que ninguém mais sente
tem os versos cheios de abismos
tem o riso

É tudo verdade o que existe
os olhos parados distantes perdidos
pintados de encantamento
botar no bolso, levar para casa
para a vida, para o fim do mundo
só para saber como seria

Como será que seria, 
eu me pergunto,
se toda essa verdade poetizada
de repente fosse mesmo verdade.


sexta-feira, 30 de setembro de 2016

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Primavera incompleta

Passei esse tempo procurando as flores
dos parques, dos jardins, dos buquês,
do vaso da mesa de jantar.
Ainda o perfume,
ainda cores tingindo a lembrança
ainda folhas, seu viço,
ainda a compaixão de vê-las,
quando colhidas, secando.
Tudo, ainda.
Não sei aonde foram
nessa primavera.
Talvez, estive pensando,
ainda seja inverno.


Quase tudo

Foi lá que perdemos nosso olhar, eu sei,
onde perdemos nosso abraço
onde esmoreceu o enlace das pernas
onde secou o suor
e os joelhos pararam de tremer.
Foi lá.
Lá, eu vi,
onde o braço firme se fez superficial
sem o entusiasmo,  sem a ânsia
de segurar forte e para sempre perto.
Foi onde os lábios mudaram o movimento.

Foi lá, tudo no mesmo momento,
longo, construído aos poucos,
esse momento mais longo que existiu.

Lá, onde perdemos o olhar,
perdemos a saudade,
o rubro das flores,
do sangue, da paixão.
Perdemos quase tudo,
quase tudo.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Horizonte

Enche o peito, inspira lentamente
É um suspiro
Pensamento longe, não sabe onde
No som a música de antes
Engole o choro,
não permite que escorra
Algo mais escorre
por dentro, por entre os dedos,
pelas nuvens que fita com olhos mansos
Espera pelo que não deve esperar
Voa aonde não deve voar
É tudo leve, tudo limpo
É tudo tão imenso
E ainda mais longínquo.

sábado, 24 de setembro de 2016

Momento em branco

Fique assim,  não se mova
Assim deitado como fazem as crianças
Assim ausente submerso no sonho
Quieto
E eu te envolvo com o meu momento
Sem barulhos, sem inquietações
Sem a ânsia da interrupção
Sem movimento
Sem nada.


sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Bistrô

Para mim, garçom,
por favor,
uma dose de mar
uma lua para decorar
Toque um silêncio
Vou sentar aqui
para ouvir
tudo me tocar

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Pílula

Eu pensava que era felicidade
e quando faltou a dose de alegria
felicidade morreu.

Era só aquela coisa colorida,
uma dose de vida comprada
numa pequena cartela.


Prelúdio

Estão baixos estes olhos.
Estão fundos,
parados como águas que não nascem.
Anunciam escuridão.
Tão estáticos, distantes,
não falam como falam os olhos vivos,
não riem, estão isentos de emoções.
Estão baixos, apenas.

sábado, 10 de setembro de 2016

Fugaz

Meu bem, eu nem sabia mais
o que era bom
nem lembrava que isso existia
pegou de surpresa, você sabe
Mas eu sinto, meu bem,
preciso confessar
acordei um dia assim,
leve outra vez,
com os mesmos olhos de antes
aliviada, sem aquele susto
acordei curada, tenho que contar
que nem doeu,
nem abriu feridas,
e passou tão breve
que nem me lembro.




segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Paradoxal

e a gente,
que vive de princípios,
a gente vive?
me explica, então
para que nos deram
instintos

sábado, 3 de setembro de 2016

Do outro lado

e de repente vem esse arrepio
me alimentar a poesia
então me explica: como faz?
me conta o segredo dessa coisa
que a gente não entende, não escolhe
não quer que fique
mas nunca vai pedir pra ir embora.



sábado, 30 de abril de 2016

Somos uma convenção

Exista, cresça. 
Seja educado. Seja gentil. 
Peça por favor, licença; peça desculpas. 
Ligue no aniversário. Dê presentes nas datas especiais. 
Dê presentes nas datas não especiais, 
sempre que houver um motivo qualquer especial. 
Retribua os presentes que ganhar. 
Sorria. Saia do quarto. Fique com as visitas. 
Convide para entrar, convide para sentar.
Ore. Mas não apenas ore, vá à igreja.
Trabalhe. Estude. Tire boas notas. 
Mas não estude qualquer coisa, 
escolha as profissões que os especialistas recomendam. 
Use cores neutras. 
Use amaciante. Passe creme no cabelo. 
Coma saudável. Seja saudável. 
Namore, case. Mas não só case, tenha filhos. 
Como assim não quer filhos? Tenha filhos. 
Namore o sexo oposto. 
Tenha um animal de estimação, 
mas não deixe o cachorro subir na cama. 
Não beba chá, beba água. 
Vote consciente. Leia o jornal. 
Não publique tanto nas redes sociais. 
Seja discreto. Ria baixo. 
Cumprimente quem gosta. 
Cumprimente quem não gosta. 
Não responda agressões. 
Não brigue. Não reclame. 
Seja positivo. Não lamente. 
Pratique atividade física. 
Mas não todos os dias, não seja obcecado. 
Não beba refrigerante. 
Coma salada, muita salada. 
Mas não se preocupe tanto com a salada, 
não seja chato. 
Compre o necessário, guarde dinheiro. 
Mas não guarde todo o dinheiro, não seja deslumbrado. 
Arrume a casa, mantenha a ordem. 
Mantenha a pia limpa. Arrume a cama. 
Passe suas roupas. 
Como assim não passa suas roupas? 
Passe sempre as roupas, 
passe até o forro das roupas íntimas. 
Cuide dos animais. Seja voluntário. 
Mas lembre, não deixe o cachorro subir na cama. 
Use roupas comportadas. 
Não use decotes. Não mostre as pernas. 
Ame-se, cuide-se. Mas não ame tanto, 
não seja narcisista. 
Suporte. Perdoe, releve. Não guarde mágoas. 
Seja amigo dos amigos. 
Seja amigo dos inimigos. 
Seja sincero. Fale sempre a verdade, 
desde que a verdade não machuque. 
Participe. Seja disponível. 
Tenha iniciativa, faça sempre além do esperado. 
Seja adulto; cultive seu lado criança. 
Seja autêntico, no limite do que disseram ser conveniente. 

Seja obediente.
Seja o que ensinaram, 
vista o uniforme, marche.

Só a convenção é segura:
seja a convenção, 
não você.



sábado, 23 de abril de 2016

Suficiência

Eu poderia viver
assim
até o fim

minhas poucas posses,
minhas crenças, minha fé
meu amor imenso
minhas guerras, minhas tréguas
minhas indagações
meu conflito, minha harmonia
meus beijos, minha fantasia
meus lamentos, meus contentamentos
minha companhia
a música
a luz do sol no vidro da minha janela
a flor que vejo abrir mais uma vez

Assim, eu poderia sim
respirar a manhã, sempre por mais um dia,
e amar a mim
até o fim.


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Sertão

Meu coração está seco.
As águas dos olhos do mundo são
instantaneamente
consumidas nas imensas rachaduras.
Muitos anos de águas seriam necessários.
As pessoas, todas suas doces cenas,
são cenas - nada mais
nuas, duras, totalmente isentas de afeição.
Não há doçura no meu coração.
Fatos, números,
lembranças vermelhas,
lembranças do que não foi,
uma saudade revoltosa,
tudo dói. Tudo escurece o olhar.
Meu coração,
que quer saber o porquê
o porquê da condenação,
esse coração está seco.
Não busca a cura; suporta, apenas.
Não há remédio para meu coração.





domingo, 14 de fevereiro de 2016

Inferno Astral

E de repente você tem um nome.
Você, que me busca todos os meses
ora insistindo em ficar um dia a mais
e mais um dia,
e outro mais
de repente você ganha um nome,
tem uma desculpa de existir.
Você, que me atira às almofadas,
que prefere as paredes sem cores;
você, absolutamente catatônico
que se põe sobre meus ombros me abraça
amorosamente
como quem quer ficar para sempre;
você, meu tempo de fogo,
meu parasita,
absolutamente irrefutável.








segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Deixe a saudade viver

Não mate a saudade.
Deixe-a viva e assim,
plena de espera e de lembrança,
fará sentido. Não o contrário.
Permita que ela ainda resista,
com um sopro de vida,
sem o odor comum às coisas mortas.
Não mate a saudade, não deixe
que o que era bom
apodreça.