segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Crônicas da Intimidade - Parte I: Cama pronta

Preparei nossa cama com os lençóis novos e o cobre-leito limpinho, devidamente cheiroso, e arrumei os quatro travesseiros, dois com fronhas novas, dois com capas decoradas, tudo combinando. Perfume para ambiente, perfume para os lençóis, perfume para os travesseiros. Tudo com aquele cheirinho que ele adora. Admirei tudo e pensei: "bom trabalho".

Nisso ele aponta à porta do quarto, olha para mim, olha para a cama. Eu, esperando o comentário mais romântico do mundo, ouço enquanto vejo a sua cara desconfiada:

- É para dormir na sala hoje?

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Óxido-redução


A nossa biologia é uma grande química
talvez uma física,
transmissão involuntária de cargas avassaladoras.
Toda clorofila se transmuda em caroteno
pigmentação da pele de repente enrubescida.
A nossa química é uma grande biologia,
permutação de cromossomos semelhantes,
enlace genético e outra vez involuntário
tudo do nada, essa coisa inexplicável de alma gêmea
átomos  opostos, prótons, elétrons,
cadeias orgânicas perfeitas,
elementos inéditos, deliciosa sensação de conhecê-los.
A nossa física é uma quase matemática
expressão alfa-numérica, triplas incógnitas,
e este desenfreado impulso de resolução;
corrente magnética, um misto de todas as ciências,
progesterona exalando pelos poros,
alguma lógica, alguma fantasia,
tempestade de hormônios, choque térmico.
A nossa química se mistura à refração da luz,
teus olhos nos meus olhos, velocidade de propagação,
simetria de imagens, vibração de cordas tensas,
uma verdadeira melodia.
Ah, a nossa ciência é um hemisfério tropical,
ou uma ilha caribenha, um sol, um frio, não sei,
talvez um verdadeiro paraíso da geografia.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O Eu Vitorioso


O Eu de amanhã traz um sorriso no rosto
e olha para o mundo com ar satisfeito.
E admira o espelho como o velho narciso
e acha tudo perfeito.

O Eu de amanhã sorri à toa,
anda saltitando pelo horizonte.
E busca calmamente seu tesouro
do outro lado da ponte.

O Eu de amanhã abraça o mundo
e agradece à vida sua vitória.
E segue seu caminho a passos firmes
pra vencer de novo em sua história.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Conferência Internacional do Amarelo

(Outubro de 1997)

E, por ora, não usaremos vermelho
azul branco verde ou rosa
cantaremos o amarelo
em verso e em prosa
e nesta grande Conferência
até a mais rubra rosa
amarelará, instantânea,
tornando-se bela e manhosa
Serão proibidas as cores
que vão além do amarelo
e a Terra inteira estará
unida num mesmo elo
O mundo brilhará feito o Sol
e tudo será muito belo
e os olhos do povo todo
refletirão amarelo
Então um dia morreremos
sem preto sem branco sem nada
e todos irão caminhar
unidos na mesma estrada
Na nossa ressurreição
haverão escadas iluminadas
e hão de nascer em nossos túmulos
lindas flores amareladas.

domingo, 12 de agosto de 2012

Pai herói


Choro de pai tira o norte
pois pai é herói, não pode
se abater ou fraquejar

mas choro de pai é sorte
de ter o pai, ainda forte
o bastante para chorar.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Restos de mim


Sopra pela janela o inconsolável vento do outono.
Chora a morte das folhas,
o verde que cai por terra.

Aqui,
sob a profundeza do meu olhar,
a onda sonora.

Agora nada mais é nada
          Não há mais rimas
                   Não há mais versos.

Eu e o meu resto,
E nada mais.





segunda-feira, 21 de maio de 2012

Um dia, falou...


Um dia falou, tão serena,
que a vida era dura cena
de uma peça sem fim.
E eu, que inda era tão moça
humilde, na lida da roça,
me neguei a crer que sim.
É que meu sonho era tanto,
tão forte, tão pleno de encanto,
que a vida era uma ansiedade;
queria voar dali
bem longe donde nasci
pra ser moça da cidade.

Um dia falou, quando eu ía
partindo, que o peito doía,
mas que seguiria forte.
E eu, com tamanha pressa,
o abraço dei às avessas
pra não perder o transporte.
Passavam duros os dias
não tinha estrebarias
nem luares na cidade.
As dores eu escrevia
nas cartas, onde dizia
que ela havia dito a verdade.

Um dia falou: vem ligeiro,
que a mãe fez um lindo canteiro
de flores, pra te esperar.
E eu, que sofria tanto
de saudade e desencanto,
retornei ao doce lar.

Eu Aqui


Estou aqui
indefinidamente olhando para o futuro
e as rugas que se formam na perfeição do teu rosto.
Aqui, onde desce a última brisa,
neste lugar perdido no esquecimento.
Estou aqui e volto aonde te encontro
deito a minha face no teu colo e estremeço
e o teu braço me aquece, me aquece.
O tempo no futuro já tombou nossos sonhos
nos contentamos em pertencermos um ao outro,
e estimamos nossas mãos entrelaçadas.

Estou aqui,
indefinidamente imaginando,
imaginando.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Quadrúpede em evolução


Vem o boi do pasto no fim do dia.
Do pasto seco, que é a vida que ele tem.
Bem ali, um passo ou dois além,
no limite do mundo onde se esconde,
um mar de verde se estende no horizonte.

Mas "Vem, boi! Vem!"
O dono reclama, o animal entende
Corda na cabeça, obediência amiga
Quadrúpede fiel sustentador da lida
Sol, chuva, frio... "Vem, boi!"
Braço de animal não sofre de fadiga

E corre o tempo como o rio corre pro mar;
o boi se cansa antes de o dono se cansar.
"Vem, boi!" Vem, balançando o ventre,
quadrúpede fiel, obedecendo sempre

O dono tem direito de escolher a sorte
O boi segue em silêncio, sendo apenas boi
Corda na cabeça, marcha para a morte.
"Vem, boi! Vem!"

E outros tantos vêm com a força que ele tem
Iguais assim em braço e destino e raça
Remoendo os restos da comida escassa
Obediência cega e produção em massa
Forjando pelo tempo a lei da sua desgraça

E o dono com orgulho do rebanho manso
que é o seu descanso
Que não vai além da cerca que ele faz
e assim, é a sua paz
Que assim, calado, lhe parece bem
“Vem, boi! Vem!”

E eu, poeta, versejo a evolução,
com muita simplicidade, mera observação:
milhares de bois da nossa geração
são bípedes.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Sons de Curitiba

Ah, esses sons que me quebram a inquietude
me chegam ao longe, bucólicos,
entremeados às vezes pela chuva

Do vendedor de sonho ao apito do trem
tantas coisas me vêm
me trazem a mim, me tiram de mim
me levam para perto e para longe do que sou:
eu, desengonçada menina do interior;
eu, estranha mulher metropolitana.

domingo, 4 de março de 2012

O Único


Prefiro os tons de cores brandas
como as que pintam a tua pele
E o arrepio que nasce da tua voz
pousando no meu ouvido

Prefiro o teu amor, e que me venha
manuscrito
e a tua saliva
assinando a carta escrita no meu corpo

Prefiro mil vezes o teu olhar
nu, puro, inconsequente
naturalmente cintilante

Prefiro as marcas das tuas unhas
o cheiro das tuas sandálias
e cálice da tua boca,
transbordando a delícia do teu hálito.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quem sou eu?

Já tem alguns anos que escrevi essa descrição de mim para algum perfil que perguntava: "Quem sou eu?"
Adotei o texto como a melhor descrição que já fiz de mim mesma, com dois adendos: primeiro que, depois de uma perfeita observação do meu amado Henrique, adicionei os palhaços à relação das coisas que me causam medo. Um fato, mesmo, já que esse medo eu tenho desde os cinco anos de idade, quando vi na TV, de relance, o aterrorizante palhaço de Poltergeist. Cada um na sua, certo? Segundo que, após a minha colação de grau como Analista de Sistemas, criei uma situação paradoxal com o meu último parágrafo, que me descrevia como poeta, amante da música e da arte. Como assim, analista de sistemas?!

Uma observação interessante é que, à época do texto, eu realmente fazia terapia que devia durar mais ou menos ano, e um dos objetivos era, de fato, aprender a arte da tolerância. De lá até hoje alguns (não muitos) anos se passaram, eu abandonei a terapia, e a expectativa de aprender tal arte continua em destaque. Não posso negar que já melhorei um tanto, não pela terapia do consultório, mas através de todos os acontecimentos ao longo desses anos. A melhor terapia é viver sem desistir, sem dúvida: chegar ao fim de uma odisseia nos torna sempre mais aptos para a próxima.

Então registro aqui esse texto, que é meu reflexo mais perfeito, para guardá-lo enquanto durarem os servidores do Google.

Um abraço!


Eu sou a Patrícia. 

Algum dia, em algum lugar, perdi a chave da paciência e agora tenho pressa. Tenho pressa de chegar a qualquer lugar, de encontrar o baú de moedas no final do arco-íris, de iniciar e de acabar o que já foi iniciado, de chegar ao final de semana e de atravessar a rua. 

Algum dia, em algum lugar, ouvi falarem sobre dragões e sobre fadas. Agora, observo em silêncio cada movimento do mundo esperando encontrar, enfim, a fada que me concederá um pedido. Quanto ao dragão, espero não vê-lo. 

Quando acordo cantando, o céu fica azul; quando acordo em silêncio, vejo o dia gris. Sou inconstante, mas nunca incoerente. E dentro de um ano, dizem os médicos, devo aprender a ser tolerante. 

Meu escudo se levanta diante de qualquer ato de covardia e injustiça, mas cai por terra quando vejo o sofrimento. Não admito cães acorrentados, cavalos no arado e pássaros na gaiola. Tenho medo do escuro, de palhaços e dos telejornais. 

Eu sou a Patrícia, amante da música e da arte, poeta e analista de sistemas - um paradoxo. E o prazer é todo meu.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Céu de Amianto


Eles podem nos seguir e nos vigiar
invadir a nossa casa enquanto dormimos
eles podem nos interrogar
e sentir o cheiro da nossa culpa
eles talvez invadam a nossa privacidade
e nos roubem a alma e o intelecto
e nos roubem os poemas que nos dedicamos
talvez nos levem aprisionados para o calabouço
Eles podem descobrir o nosso segredo
e nos condenar
podem sentir inveja da nossa rapidez
porque nós vamos fugir
vamos fugir
até que eles esqueçam nossos nomes
Eles podem perguntar por que cometemos este delito
eles nunca entenderão porque não falam a nossa língua
eles nem conhecem nenhum dos prazeres da nossa língua
eles não entendem o que são as delícias
as papoulas, as mariposas,
a vulcânica sensação que temos no perigo.