quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Primeiro Amor

Lembro-me claramente da primeira vez que vi você. Você sentado numa carteira da fila ao lado, um lápis colorido na mão, no primeiro dia de aula da nossa turma de pré-escola. Estava lindo. Você vestia a tradicional bermuda xadrez azul e branca com uns lindos suspensórios pretos. A camisa, branca.

E eu estava lá. Na primeira carteira, da primeira fila, expondo meus novos lápis-de-cor, multicoloridos, cadernos encapados com celofane cor-de-rosa, uma tetéia. Pensei se eu estava bem no meu vestido rodado xadrez azul e branco, igualzinho à cor da sua bermuda. Arrumei a meia esticando-a até o joelho, conferi meu sapato preto. Estava tudo em ordem. Dali até você me notar, seria uma simples questão de levantar-me e apontar o lápis no lixeiro, próximo à porta.


Cheguei à conclusão de que o meu vestido xadrez azul não estava ajudando muito. Ou seria a idade? Talvez você gostasse de uma menina mais velha, bem mais velha que você, com uns sete anos, talvez oito. Mas eu só tinha seis, recém completados.


Passei noites e muitas horas de recreio pensando sobre o que fazer para que você me notasse. Pensei em derrubá-lo no pátio da escola, em dar-lhe a maçã que havia levado para o lanche, em lhe mostrar o coração que eu havia desenhado com o seu nome, quando aprendi a escrevê-lo corretamente. Mas nada eu conseguia. E você era daqueles meninos que saíam como um flash da sala de aula, bastava a ameaça do sinal. Ficava lá, jogando bola, tomando sorvete, comendo salgadinho com coca-cola e mascando chicletes.


Mas as crianças sempre têm umas idéias brilhantes. Naquela noite, em casa, eu fazia o que mais gostava: fuçava nas caixas de papéis que papai guardava. Aquelas coisas importantes, documentos que eu nem conseguia ler direito, folhas bonitas, coloridas, carbonos verdes, vermelhos, chaveiros e algumas canetinhas coloridas, tudo guardado naquelas caixinhas de sapato. Sentada no chão, na sala, eu olhava tudo; era a minha diversão predileta. Papai, do sofá, lendo revistas, vendo o jornal, respondia minhas perguntas, uma a uma.


Num momento da minha inocente investigação, encontrei um talão de cheques com algumas folhas, no fundo da caixa. Ora, se estava no fundo, papai não devia precisar. Ninguém nunca mexia naquelas caixas, somente ia-se acrescentando novos e novos papéis. Eu já sabia o que era um talão de cheques, já havia entendido. Era um bloquinho com folhas que podiam conter qualquer valor, e que pagavam nossas contas. Papai também havia explicado alguma coisa sobre o assunto.


- Pai, por que estes cheques estão jogados aqui nesta caixa, e não na sua carteira, como os outros?


O pai explicou que eram cheques antigos, de um Banco do qual ele não era mais cliente, e por isso estava lá, e não na sua carteira.


Subentenda aquilo que eu subentendi. Crianças são inteligentes. Brilhantes. Têm idéias inimagináveis. Eu logo vi, era aquela a saída. Eu podia ter tudo o que eu quisesse. Inclusive, o seu amor. E seria breve.


A tarde chegou e aquele era o dia mais feliz da minha vida. Eu caminhava para a escola com a certeza de quem faria um ato incomparável, que nenhuma outra menina, nem de sete, nem de oito anos, faria. O meu ato seria único, e você finalmente me notaria.


No recreio, pedi à minha melhor amiga que fizesse a intermediação. Num envelope colorido que fiz com folha de caderno, com aquele coração desenhado, contendo o seu nome no meio, mandei entregar-lhe o meu melhor presente. O cheque. Pensei numa quantia alta, considerável. Assinei. E mandei, com o cheque, um recado: é para você guardar, para o nosso casamento.


De retorno, ganhei um namorado. Você olhava para mim durante a aula, e, num momento extremo de paixão, mandou-me uma bala de hortelã. Eram dias felizes. E eu ainda tinha duas folhas de cheque, das três que estavam no velho talão. Guardei-as, como quem guarda o maior tesouro; uma pequena folha que pode me dar um grande amor. Haveria um momento para usá-las. Papai devia ser mesmo uma pessoa feliz, com tantas folhas como aquelas que ele tinha.


Infelizmente, o nosso namoro durou menos de uma semana. Na limpeza semanal da minha mochila, mamãe encontrou as folhas preciosas, guardadas, junto aos meus cadernos. Fui obrigada a falar o que havia feito com a outra folha. Claro, não disse tudo. Poderiam querer mudar-me de escola. Disse que havia dado, de presente, a um amiguinho. Triste decisão.


Papai quase enlouqueceu. Explicou-me que, se eu não trouxesse a folha de volta, ele poderia ser preso porque não teria dinheiro para pagar o cheque que eu havia feito. Fiquei sabendo que as pessoas pagam por seus cheques, com um dinheiro que guardam no Banco. E que é proibido assinar uma coisa em lugar de outra pessoa, e que a isso chamavam falsificação de assinatura. Mas eu expliquei que havia assinado com o meu nome, e, portanto, não havia este risco. Só que papai não podia ser preso! Não havia solução. Era o fim.


No dia seguinte, com aquela tristeza que você pode imaginar, cheguei à escola. Minha melhor amiga foi, outra vez, minha interlocutora. Pediu-lhe, que, se você ainda não tivesse usado o cheque, por favor, devolvesse, porque eu não o amava mais. E o que mais eu poderia dizer? Pensei na única forma de pedir, sem deixar parecer que eu havia roubado o cheque de papai. E que eu não tinha aquele dinheiro. Seria ainda mais terrível. Você teria rido, e o meu vestido xadrez azul teria sido pequeno demais para esconder a minha vergonha. Então falei o óbvio: devolva-me o dinheiro, porque não quero mais me casar com você.


Bem, foi aquele o fim do nosso amor. E eu lhe agradeço pela bala de hortelã. Certamente hoje, quase vinte anos depois, eu não teria coragem de mandar um cheque ao meu amado, para pedir-lhe em casamento. Mas minha melhor amiga, que havia sentido tudo de perto, disse-me uma linda frase de consolo, que havia ouvido em algum lugar: o verdadeiro amor, a gente não compra; a gente conquista.



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