quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Fobia

(2006)

Tenho vivido um susto constante.
Um medo, das grandes catástrofes,
palpitação.

Estou perdida dentro de algum espelho
que não me reflete mais.
Será esse o curto destino que estava escrito
nas linhas da minha mão?

É nesse susto que envelheço
um ano inteiro em um mês
cinquenta anos em vinte e três
pulso acelerado
trêmulo traço, sonho atormentado,
um pesadelo
- e só.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Josés e Marias

(1999)

Os versos que sempre escrevi
fatos, que às vezes vivi,
têm algo que inventei.
Mas nada foi tão real
nada foi tão racional
como a lágrima que ora chorei.

Olho para mim, reclamo,
mas todas as pessoas que amo
têm para comer e viver;
e mesmo tão arrufadas
sabem que um dia, já esgotadas
terão um lugar pra jazer

Não sei por que, é engraçado:
de repente, olhei pro lado,
e nunca me espantei assim.
Era um mundo silencioso
vasto e superpopuloso
que estava tão perto de mim!

E sempre, a cada momento,
na esquina da rua e do tempo,
formava-se igual história:
muitos Josés e Marias
singelas estrebarias
que já não eram de glória.

Maria, mulher sofrida,
quando não tinha comida,
ninava seu filho sem nome.
Adormecendo o menino,
lutava contra o destino:
no sono, esquecia da fome.

José muito pouco sabia
e mesmo na dor que sofria
a amar ensinava a criança.
Mas a realidade da rua
que era uma coisa tão sua,
tinha um querer de vingança.

Veja se pode entender:
as vidas que tentam vencer
mesmo juntas, vivem sós!
E a nossa cabeça, erguida,
se passa despercebida
do mundo abaixo de nós.

A busca tão repetida
de grãos pra manter a vida
não passa na televisão
Porque a propaganda e sua fama
(cenas de luxo e de cama)
dispensam catar papelão

Milhões de Josés e Marias,
sem sonhos, sem fantasias,
e uma verdade esquecida.
E essa visão, tão medonha,
me queima, me fere, envergonha,
por ter reclamado da vida.

Mas o que tocou mais profundo
foi perceber que esse mundo
em vão almejava vencer
Porque a cada vez a promessa
era esquecida depressa
por quem alcançava o poder.

E o que me deixa mais triste
é saber que a história existe
sempre, e é fato recente:
no triste episódio narrado
os verbos estão no passado
mas a recorrência é presente.






Delírios do poeta solitário

(2001)

Às vezes tenho vontade de não ser.
Queria uma porta que nunca se abrisse
pra impedir esse impulso inconstante.

O meu defeito é perfeito:
ter nascido poeta.
O meu primeiro grito
rimou com infinito
e ultrapassou a barreira dos anos
Ser normal, talvez seria
esquecer a poesia?
Fugir, fugir desse encanto
que tem tanto a ver com pranto?

Mas chega de ais,
é melhor esquecer:
ninguém é poeta e deixa de ser.



A outra face

(2001)

Eu às vezes queria não ter esse às vezes
que às vezes se esconde
detrás do meu sorriso.



domingo, 27 de outubro de 2013

Crônicas da Intimidade - Quadradinho de Oito

Em dia de prova do Enem, o país inteiro é Enem. Televisão, internet, papo de elevador. E, numa dessas, surge uma piadinha na Internet fazendo alusão irônica à cultura inútil que se esparrama entre a nova juventude, simulando umas questões de Enem de brincadeira, e sendo a última:

"Calcule a rotação da terra levando em consideração o deslocamento provocado pelo impacto do quadradinho de oito nos bailes funks."

Rio muito sozinha, ele me pergunta do que estou rindo, mostro a tela do computador. Ele ri muito, mas no final me olha com uns olhos de quem não entendeu nada:

- Quadradinho de oito?
- É, aquela dança funk que virou a maior polêmica por aí, que dançam de bumbum pra cima, sabe?
- Não!
- Ai, amor! - faço aquela cara de "não acredito!" - Assim, ó!

Uns três segundos de tentativa de demonstração no meio do tapete da sala e paro, com um gemido, me torcendo de dor.

- Acho que desloquei uma vértebra!

Horas se passam, a dor não passa, e me pego aqui procurando o telefone da quiropraxista.

Porque a quiropraxia resolve quase tudo, inclusive a coluna vertebral de gente que não adora funk, mas adora mostrar que sabe de tudo - mesmo que seja o quadradinho de oito.



A trágica figura que me fez deslocar uma vértebra demonstrando o quadradinho de oito.

CRU-ZE-NA

Diarista em casa, apartamento novo, primeira vez que os vidros do apartamento seriam limpados, cheios de resquícios da construção: cimento, massa corrida, cola dos adesivos que vieram nos vidros novos. O trabalho foi árduo, e a diarista não ficou satisfeita com o resultado do próprio trabalho:

- Limpei, limpei, mas olha só, não saiu tudo. A gente precisa mesmo é de cruzena, que aí sim vai sair tudo.

Franzi a testa, fiz aquela cara de quem entende tudo do mundo dos produtos de limpeza e nunca ouviu um pio sequer sobre esse tal produto.
- Cruzena, Josefa? Isso é um nome de produto?!
Ela me olhava com aquela cara de "isso mesmo", fazendo sinal de aprovação com a cabeça.
- Nossa, não conheço esse produto! Mas onde se compra?

Agora era a vez da Josefa franzir a testa e me indagar, com um incontestável ar de estupefação.
- Ué, no mercado! Você não conhece Cruzena?!

Não, eu não conhecia Cruzena. Silabei:
- CRU-ZE-NA?
- Isso!

Peguei um papel, escrevi em letras de forma, mostrei:
- Assim?
- Isso!

Fim de semana, hora das compras, dividi a tarefa com o Henrique, no corredor dos produtos de limpeza:
- Amor, me ajuda a procurar: a Josefa pediu para comprarmos Cruzena para limpar os vidros. Nunca vi, vamos ver se tem aqui!

E veio então a terceira pessoa a franzir a testa nessa história, depois de uma breve olhada pelas prateleiras:
- Patrícia, Cruzena? Ela não quis dizer QUEROSENE?
- Não, é Cruzena mesmo. Olha aqui, eu anotei, pedi pra ela conferir o nome, é CRU-ZE-NA mesmo. Vamos procurar.

Não encontramos. O Henrique insistiu:
- Tenho quase certeza de que ela quis dizer "querosene". Já ouvi muita gente falando "querosene" de várias formas erradas diferentes!

E eu tinha querosene em casa, que eu usava para lavar os pincéis na hora de pintar telas. Estava guardada em separado dos produtos de limpeza, no armário fechado junto com os pincéis e tintas a óleo. Separei meu litro de querosene e pensei: vamos ver então.

Quando a Josefa chegou, passei as instruções do dia e finalizei com o litro de querosene na mão:
- Josefa, era isso que você queria para limpar os vidros?

E ela com aquele ar feliz, de quem vê o papai noel, de quem finalmente deixaria os vidros do jeitinho que ela gostava:
- Iiiiiiissooooooo!

A busca pela Cruzena foi encerrada, sem maiores comentários a respeito, com aquele riso segurado e solto pra dentro, de quem imagina a nuvem de pensamento da Josefa quando eu disse que não conhecia Cruzena:
"Só tem que ser dondoca, cruiz credo! Não acredito que essa moça nunca viu Cruzena na vida!"


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Meia fase

meia luz de sol que já se ia
soma lâmpada, luz e meia
meia luz de luz que não clareia
meio sol, meio noite, meio dia

meia luz ou
luz e meia?

lâmpada, na dúvida se acende
soma luz do sol que já se vai
meia luz, luz que se retrai,
luta contra o dia que se rende

luz e meia ou
meia luz?

poético crepúsculo, se atrase,
ou ande, tire logo a divisória
que quando a meia luz é compulsória
é defeito, não me apraz - é meia fase.





quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Possessão

(2002)

Não chore essa tristeza, que ela é minha.
A minha alma está sozinha,
e essa paz é que me traz alívio.
Chorar é tudo o que eu preciso:
lavar os fantasmas da alma,
recomeçar.

Não sinta essa melancolia, que ela passa.
As minhas lágrimas já são como fumaça,
somem de todo, só me resta o cheiro.
Gritar para dentro é devaneio:
louvar os fantasmas da casa,
poetizar.

Eu de novo

(2002)

Acho estranho esse meu novo jeito estranho
acho até que estou forte demais
A minha mágoa é um buraco sem tamanho
mas eu leio os jornais
e sigo essa vidinha cheia de paredes
(acho que sou só um tijolo a mais)
Tem um corpo quente na minha rede
(acho que ele dorme em paz)
E enquanto eu faço backup de todos os arquivos
vendo o mundo com essa cara de quero mais
procuro por esse escuro o último dos seres vivos
aquele que não me esquecerá jamais
Acho que se eu chorar eu congelo a minha face
(estou representando bem demais)
Acho que por mais que eu disfarçasse
alguém iria perceber meus ais
Mas eu estou assim bem controlada
(meus pensamentos já nem são fatais)
Não vou fazer nenhuma marmelada
nem vou chamar os homens de anormais
Eu vou apenas seguir minha vidinha
já que é essa a sina dos animais
e se a minha lágrima estiver congelada
- ah, é só um gelinho a mais.


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A menina que amava os trovões

Era dia de tempestade. Lá fora, o céu preto era cortado por raios intensos, acompanhados daqueles estrondos - os trovões. Para a menina, não era um dia de tempestade, porque tempestade tem aquele sentido de agitação violenta. Era um dia de paz.

Via a mãe correr assustada, rezar enquanto queimava os ramos bentos; o pai correr apressado para fincar o machado no chão de terra, em direção à tempestade e próximo da casa; a mãe preparar as velas porque, sempre que a tempestade chegava, era a luz que ia embora. Às vezes, o pai arrumava também o lampião. Via tudo acontecer ao redor e sentava quieta, esperando o pai e a mãe acabarem as orações e simpatias, ou procurava uma janela onde pudesse ver aquilo de mais bonito: os fios de luz entremeados, dando tons de azul ao céu preto quanto a tempestade era à noite. 

O momento de observação durava tempo suficiente para a mãe interromper o pensamento:
- Menina, saia já de perto dessa janela! Não tá vendo o temporal?

Cumprido o ritual da tempestade, o pai deixava qualquer lida da roça, fosse noite ou dia, e se abrigava em casa. E a menina sabia que, pai estando em casa, tudo estava seguro.

Tempestade à noite era jantar sem televisão, com a mesa à luz de velas grudadas em antigas latas de biscoitos, para ficarem mais altas que a comida. Era jantar quieto, silente, com pai e mãe às vezes apreensivos enquanto estouravam os raios e os trovões e quando as árvores sacolejavam demasiado. Depois do jantar, era quase sagrado um jogo de cartas à luz de vela, para dar um tempo de digestão antes de ir para a cama. E ali estavam quase todos, porque o pai fez questão de ensinar o jogo de cartas para os filhos ainda crianças, para que todos pudessem ser seus parceiros nas horas vagas.

Tempestade de dia era ainda melhor. Quando via a tempestade se aproximando, um suspiro de felicidade envolvia a menina. Questão de tempo até o pai chegar da roça, apressado, tomar seu banho e se recolher, e fazer o pedido:

- Bênhe, já fez o chimarrão? E pipoca!

E o pai estando em casa, tudo estava seguro. Não havia sentido para alguém ter medo dos trovões.
- Medo por quê?! É tão bom! 

O dia de tempestade tinha cheiro de pipoca, de mate-doce, de bolinho de chuva, de bolachas assadas no forno. Tinha cheiro de pai e de mãe, de família reunida. Tinha som de trovões e das vozes do pai e da mãe, italianos perfeitos, falando muito e bem alto, brigando na hora de contar quem fez mais pontos no jogo de canastra. Tinha a possibilidade de ganhar uma canastra do pai. Tinha silêncio. Lá fora, o mundo poderia cair, não importava, porque ali estavam a mãe e o pai, tudo iria ficar bem. 

Não precisava estar junto - podia estar em outro canto da casa, brincando, desenhando - ou escrevendo, quando já menina crescida. Só precisava estar ali, só precisava saber que estava tudo em ordem. Era simplesmente uma paz, um pequeno sorriso interior que nascia quando via apontar o primeiro vento de chuva - e que nasceria para sempre naquele interior de menina, mesmo quando crescida, mesmo quando a casa do pai ficava tão longe, mesmo quando não sentia mais o cheiro dos ramos bentos queimados pela mãe, nem o cheiro dos bolinhos de chuva e do mate com canela. 

Era só saber que estava ali. Era toda uma licença poética para os dias de trovões. Lá fora, o mundo parecia parar enquanto os raios acendiam no céu e os trovões faziam a sua intensa melodia. Era simplesmente amor, puro, claro, pitoresco, coberto de alívios, sem maiores adjetivos ou explicações.





quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Por um fio

Rede de pescar:
linha entrelaçada,
suporta o mar.

Vida - quente, frio:
linha delicada,
sempre por um fio.

Vida por um fio.
Tão assutadora,
causa calafrio.



quinta-feira, 25 de abril de 2013

Doce Infância



Um grande pé de Azaleia
florescendo na lembrança.
Nascem a todo instante
as deliciosas memórias.
Maravilhosas histórias,
contadas, ainda não lidas,
a uma pequena criança.

Deveria haver muitas vidas
para tanto sentimento.

E o que conto primeiro?
Tantas coisas que me vêm!
Lembro de cada canteiro
Pecinhas aqui e ali
Ruas por onde corri

Em uma manhã feliz
fui ser pequena aprendiz
de andar de bicicleta
O pai segurando firme
a sua pequenina atleta
Faceira, leve andorinha
no brinquedo de rodinha

Ai, que delícia falar sobre tudo
que engrandeceu meu mundo!

Antes disso, eu lembro ainda,
a mãe pegando no giz
Um risco branco na lousa,
empenho que nunca finda
Flor de perfeito matiz
me ensinava a escrever o nome.

Tinha cerca de madeira
fechando todo o quintal
Tinha dança da cadeira
tinha gostoso mingau

Menina inquieta e ligeira
duas dores lembro bem:
quando no parque da esquina
numa brincadeira traquina
caí do escorregador
Quebrei o braço! Que dor!
E ainda foi mais além:
de castigo, a fase inteira
Saindo do parque também:
num ligeiro zigue-zague
me perdi na bicicleta
lá se foi a pequena atleta
(ainda era aprendiz)
de nariz no calçamento
Machuquei o meu nariz
que sangrava demasiado
Êta! Que susto danado!

Quando chegava natal,
aniversário, qualquer data,
já sabia a porta exata
que escondia o meu presente:
no fundo do guarda-roupas
o encontrava, afinal!
Lindo, embalado! E, contente,
punha-me a imaginar...
Qual presente iria ganhar?

O pai sentava no chão
brincar com o jogo Papão.

O fim de semana chegava
que delícia que eu achava!
Pai em casa, mãe também
e íamos todos pro sítio.
Como fazia bem!
Tinha cavalo e bezerro
Tinha cachorro e carneiro.
Nata com pão e leite
fresquinho tirado da vaca.
Dormir na casa da vó
quarto escuro, a gente só
e os sapos na cantoria!
Só hoje entendo a alegria
que tinha naquele momento.
Dos sapos, eu tinha medo,
mas este era o meu segredo.

A escola era uma beleza
lembro-me tão claramente!
No primeiro dia de aula
que medo de estar na sala!
O pai, vez em quando, às pressas,
deixava o trabalho às avessas
e vinha me socorrer:
me levava ao hospital
parar a hemorragia nasal
Outra vez ia me buscar
e me deixava ficar
com ele, no seu trabalho.
E quando aprendi a ler,
lá eu vi, nunca vou esquecer,
um nome chamado... Pinto!
Difícil de acreditar!
O pai explicou, paciente,
que era nome de gente.

Tinha lápis colorido
na caixa de vinte e quatro
Bolsa de urso que virava pochete
que a mãe me deu de presente.

A mãe fazia costuras
tão lindas pra gente usar!
Certa vez fez fantasia
rodada, pra eu sambar!
Cheia de babadinhos
que orgulho que eu sentia
Fui tão depressa provar
pra dançar de vestidinho

Papel de carta perfumado
cuidado, colecionado!

No verão, calor danado
refrescado na piscina
Pedalando com cuidado
minha irmã, linda menina,
ia comigo, lado a lado.

Tinha uma boia de braço
com desenho de um palhaço.

Tinha uma mesa amarela
uma cozinha amarela.
Tinha uma cor amarela na minha aquarela.

Certa vez, dia da criança,
o pai chega de viagem
e traz uma linda lembrança
Que coisa linda de imagem!
Era o jogo de carimbos
que tanto tinha querido
Ainda o guardo comigo.

Um dia chegou, de repente
assim, no meio da noite,
um pequenino irmãozinho!
Mas era tão pequenino!
A mãe estava contente
o pai estava contente
a gente estava contente.
Era um enorme presente!

Teve uma noite, ao acaso
convite pra batizado
em que ocorreu um acidente
A mãe ficou machucada
e eu estava assustada
no banco do hospital.
Foi um infernal ruído
o carro ficou destruído
mas todos ficamos bem
Ganhei um pano listrado
e um santinho sagrado.

Um dia veio a mudança
pra uma cidade, pra outra
maravilhosa bagunça!
Era uma nova cidade
nova escola, nova idade,
novas coisas pra fazer!
Chão de terra, fruta no pé
fumaça na chaminé
infinita liberdade
espaço para crescer.

Tinha gostoso risoto
soltando fumaça no prato.

A vida é assim tão intensa
como se fosse sentença
essa coisa de recordar.
E nunca há de parar!
Eu me perco em me lembrar.

Tinha mãe dando conselho
Tinha pai muito ciumento
Tinha roupa secando ao vento
Tinha laço no cabelo

Tanta coisa... Tanta tinha!
A vida era simples assim.
Mas ano ia, ano vinha....
Ai! Que saudade de mim!

domingo, 17 de março de 2013

Sobre pais, filhos e despedidas

Hoje, um filho deu adeus ao seu pai - mas nenhum pai deu adeus ao seu filho. Quisera que sempre fossem os filhos a acompanhar os pais em sua velhice, levando-os pela mão imaginária até o último caminho, cientes de que foi cumprida por completo a trajetória! Quisera que sempre os pais pudessem ser carregados a última vez pelos seus filhos, e nunca os filhos pelos pais; que o curso natural da vida fosse sempre cumprido.

E hoje um filho deu adeus ao seu pai. Mas nessa hora não importa o quão correto tenha sido o curso da vida, ainda é uma dor que dói, ainda é uma luz que se apaga, ainda é a mesma pergunta sem resposta.

Nada pode ser simples quando se olha pela última vez para quem se ama. Aquelas dúvidas todas surgem enormes e mais ofuscantes, ao mesmo tempo em que se lembra uma certeza: um dia será a minha vez. Quando será a minha vez? Quisera ser eterna, quisera ter certeza de que não é um adeus, é um "até breve"... Quisera colocar todos aqueles que amo dentro da minha caixa secreta, fechar muito bem, para sempre, para que sempre estivessem ali. Não haveria forma de ser assim?

Não, não há como ser assim. Todos os dias, a única certeza é o segundo presente, que pode ser o último. Quem será forte o suficiente quando for o último? Quem suportará essa dor?

Pais e filhos, seres únicos, para sempre unidos pelo laço de sangue ou de afeto, tão distantes pela graça e possibilidade de serem diferentes. Pais e filhos são seres comuns que concordam, discordam, amam, magoam. Pessoas como outras quaisquer, mas sempre pais e filhos. Pais e filhos recebem o desafio enorme de aceitarem um ao outro como são, do aprendizado mútuo, do respeito das diferenças. Pais imaginam que sua missão é ensinar os filhos, mas precisam estar abertos para aprender com eles. Filhos esperam que os pais sejam por eles, mas precisam entender a troca que deve haver nessa relação. Pais e filhos são a primeira lição de que as pessoas são únicas e diferentes, frágeis e, por assim serem, sujeitas às mesmas fraquezas em seu caminho.

Todos os dias somos agraciados com a chance de dar novas cores à pintura da vida, de perdoar, de se doar, de se calar, quando a intenção da palavra não for nobre o suficiente. Todos os dias temos a possibilidade de fazer daquele o dia em que a mágoa profunda será relevada, em que os erros serão perdoados, que entenderemos que pais são apenas pais, mas são pessoas comuns, e filhos são apenas filhos, mas são pessoas comuns. Remover o véu da expectativa; substituí-lo pelo da compreensão, do respeito, da gratidão.

O último beijo deixado no rosto frio de um pai que morre tem uma carga infinita de palavras de gratidão e de perdão, mesmo sobre aquelas coisas que não sabe ao certo por que precisam ser perdoadas. Mesmo pelos erros que não se sabe se cometeu. São palavras indizíveis, inexpressáveis, aparentemente impossíveis de serem ditas de outra forma.

O derradeiro momento traz consigo um céu aberto, um chão coberto, um incompreensível sentimento que só aparece nessa hora. E não é assim por sermos fracos, mas por sermos humanos; não é por sermos pequenos, mas por sermos puros. A pequenez que sentimos nesse momento é sempre fruto de não termos sido preparados para amar de coração aberto, por termos aprendido a guardar os sentimentos, a trancá-los, para que somente fossem vistos por nós mesmos. Não nos ensinaram que não há hora certa para dizer "eu te amo", "eu te perdoo". Não nos ensinaram que nem sempre é necessário ser culpado para pedir perdão. Não nos ensinaram que não é preciso esconder nossas fraquezas.

Todos os dias temos o desafio de deixar de tentar compreender, de aceitar, de deixar de procurar os culpados, de olhar para a estrada que está à frente e não para as pegadas que ficaram. E no dia de hoje, do fundo da minha pequenez, repito mentalmente a minha velha conclusão: viver é um desafio, uma arte. Uma graça diária.




terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Inocência


Riem-me as árvores da praça
e eu as contemplo em meu olhar poético.
Tenho um pensamento eclético
fico sem graça.

Divago minhas rimas neste enleio
e sonho, e o meu sonho me domina.
A força do minuto me abomina,
e perco o freio.

Relato tudo no papel do pensamento
com minhas costas sobre a grama debruçadas.
Me contagio com as palavras condenadas
me alimento.

Sinto receio do receio que me surge
e enrubesce minha face delirante.
O meu desejo se estampa em meu semblante
a noite urge.

Riem-me as árvores com seiva de endorfina
abro meus olhos e me sinto deslocada.
Talvez o verso seja a flor da madrugada
e eu, uma menina.


domingo, 17 de fevereiro de 2013

Portas e Janelas


Vasos quebrados, sonhos partidos
onde está o que não está destruído?
Limpe seus olhos e seus ouvidos
Não é o mundo que está sujo:
é o seu vidro
O vidro da sua janela está embaçado
abra a janela, porque lá fora,
lá fora o sol tem aparecido
e tudo está aquecido

Tem algo que você tem esquecido
e quando estiver convencido
olhe e veja pela sua janela
então cante comigo
O dia está quase enternecido

Abra a sua janela,
a porta está ao lado dela.




terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Quarta-feira de cinzas

Eu ouvia a chuva branda
e a tua antiga máquina de costura.
Era uma paz que eu tinha.
A tua voz que, vez em quando, balbuciava
a tua fita que media, media,
imaginava, cortava, construía.
A reza era de manhã.
À tarde, só ouvíamos a chuva,
e palpitávamos, frente à TV,
qual seria a escola de samba campeã.
Ao fim do dia era a mesma rotina.
Paravas teu trabalho para outros afazeres,
e eu ia, de botas, guarda-chuva,
buscar as vacas, longe, na invernada.
É assim que eu me lembro.