domingo, 26 de julho de 2015

Curriculum para deixar de blá-blá-blá

Meu nome é Patrícia, nasci em 1983, e esse é o meu curriculum nada convencional, só para o caso de ser preciso eu explicar quem eu sou. É que tenho sentido uma necessidade de pintar uma placa na testa pra deixar algumas coisas mais claras, depois de passar por uma diarista que pensa que eu não entendo de faxina e de receber um HA-HA-HA ao comentar que eu cresci na roça.

- Por que você riu?
- Porque você falou que veio da roça.
- Mas eu vim da roça.
- Ah... Achei que estava brincando...

Pessoas não nos conhecem e criam conceitos sobre alguns (breves) momentos que vivem conosco. Pessoas podem viver longos momentos conosco e jamais imaginar com quem estão lidando.

- Eu já castrei porquinhos, sabia?
- Hã?!!!

Então, acho que é preciso registrar minhas experiências, até para que pessoas saibam que eu domino bem uma foice. E tomem distância quando essa for a melhor alternativa.

Em 1990, quando eu tinha sete anos, meu pai - bancário, mas desde criança da roça e vivendo na roça aos finais de semana - foi transferido de cidade, e a família se mudou, por poucos meses, para uma nova cidade. A atividade de compradora, que eu exercia desde cedo buscando leite no mercado, ficou um pouco dificultada, porque o mercado ficava mais longe - e não tinha Mu-Mu para pegar no final da compra. Ainda em 1990, meu pai deixou definitivamente o Banco e nos mudamos para o sítio, e aí começou a nova fase do aprendizado que compõe a minha vasta experiência profissional.

A escola era uma escola do interior, dessas de todos os alunos - que somavam uns vinte - reunidos numa mesma sala, com um mesmo professor. Mas foi tudo que eu precisava. Cheguei à quinta série perfeita, pronta, sem qualquer aprendizado pendente. Seu Avelino, meu professor, era um verdadeiro mestre na arte de ensinar - e de educar também, muitas vezes, algumas crianças que não queriam estudar. Às sextas-feiras, nós - as crianças - ajudávamos o professor a limpar a escola. E o trabalho era sério, na segunda-feira escola limpa para uma nova semana.

Eu adorei o sítio, estar com meu pai para todos os lados, andar de trator, ir para longe, fazer descobertas. E aí ganhei o título honorário de Secretária do Pai - era assim que ele me apresentava nos lugares onde chegávamos, como as agropecuárias, os bancos, os supermercados, os escritórios em geral que ele frequentava na cidade.

Assim, o grude com o pai foi se desenvolvendo até virar ofício: quando eu tinha meus 10 anos, lá por 1993, as atividades foram aumentando o grau de dificuldade, e fui recebendo promoções: de carregadora de banquinho e lavadora de copos de ordenha, fui promovida a buscadora de vacas mansas; depois a buscadora de vacas menos mansas e que ficavam mais longe da estrebaria; depois fui promovida a ordenhadora (sem deixar de fazer as atividades anteriores, claro).

Se você tem filhos na idade de onze, doze anos, olhe para eles aí do seu lado: com a idade deles, ao invés de estar no aconchego do quarto jogando videogame, cheia de eletrônicos e tênis de marca, eu estava lá na lida do campo, acordando noite escura, tomando meu café e vestindo toucas e três meias nos pés para pisar a geada e ir buscar as vacas para a ordenha. E era assim à tarde também: quando o ônibus chegava da aula na cidade, o lanche era rápido para se agasalhar bem e fazer o trabalho da segunda ordenha do dia. O leite era o principal sustento da família, e esse meu trabalho teve longa duração, até os 17 anos; com sol ou com frio, eu estava lá com o pai. Experiência nível máximo no quesito ordenha. Por causa de toda essa experiência, fui passar um esmalte nas unhas pela primeira vez lá pelos 18 anos, porque antes disso as unhas tinham de estar sempre curtinhas. Nada de beliscar as vacas.

No período em que não tinha aula, depois da ordenha, geralmente tínhamos - eu, o pai, e muitas vezes minha irmã - hectares e hectares de terras para cuidar na enxada, capinar, arrancar matos com as mãos na raiz das plantas para não quebrar os talos. Arrancamos muito feijão nessa vida, batemos o feijão, ensacamos o feijão, viramos o feijão espalhado no armazém, por dias e dias, com os pés, para evitar que mofasse. Quebramos milho na colheita das espigas, mãos cheias de cortes das folhas ásperas e cortantes; batemos o milho, ensacamos o milho. Capinamos muitas e muitas roças com o pai. Pisamos muito barro, muito chão batido.

Tirei muito esterco dos chiqueiros, das criações de porcos do pai, empurrando com umas pás grandes e pesadas de madeira. Lavei muitos chiqueiros, ajudei a vacinar, a castrar porquinhos. Nunca passei a navalha no animal, mas segurei firme e olhando atentamente. Eu sei que aprendi. E aprendi direitinho a técnica de passar o canivete afiado na batata inglesa, antes do corte. Para descontaminar. Nunca perdemos um porquinho por causa de castração, sempre se recuperaram mais rápido que o meu cãozinho que foi para o veterinário.

Usei muitas galochas nessa vida, brancas e pretas, sempre até quebrar de tanto usar e ser cortada para virar um sapato - aí era hora de ganhar uma galocha nova. Não para moda, mas para pisar barro mesmo, para tirar leite em dia de chuva, para limpar chiqueiro.

Andei muitos quilômetros puxada de trator, sentada atrás em cima da plantadeira, não deixando que nenhum cano escapasse do lugar para que as sementes entrassem sempre na vala certa, cuidando que não acabassem nem o adubo, nem a semente. O pai na direção, sempre atento a qualquer sinal que fizesse.

Capinei muitas vezes o lote de casa, o parreiral, ajudei a colher uvas, pisar uvas, lavar o barril, tirar a bagaça - sempre com o cuidado do pai, porque só o cheiro embebedava.

Perdi a conta das vezes que ajudei o pai a tirar couro de boi carneado em casa para o consumo. O boi pendurado pelas patas traseiras, aberto ao meio, já com as vísceras e os órgãos tirados, separado o que podia ser para o consumo. Toquei no braço muitas horas a máquina de moer carne, pra fazer a carne moída do gado ou o salame, quando era a vez do porco. Ajudei na limpeza da buchada pra fazer dobradinha. Tocar a máquina pra encher salame. Fazer fumaça no salame pra defumar, diariamente aos pouquinhos, até que ficasse bom para o consumo.

Segurar o saco pra quirela quando o pai moía o milho na máquina, para alimentar os bichos.
Pegar galinha, segurar - nunca tive força pra quebrar o pescoço, então vinha a mãe ou o pai; queimar na água fervendo pra tirar as penas, depenar, tirar os "penotes" e as "penugens". Abrir a galinha, cortar os pés, a cabeça. Limpar a moela da galinha. Tudo sempre muito bem higienizado.

Tinha a parte de dentro da casa também, claro - não só da nossa, como também o casarão enorme da minha avó, muitas vezes, nesse caso com cera feita de parafina e óleo diesel e passada de joelho, lustrada com escovão de ferro até abrir o brilho. Na minha casa era mais fácil, casa de alvenaria, só uma sala para encerar, piso de cerâmica. Esfreguei muito rejunte com a escova, toda a semana - era assim que a mãe ensinava. Nada pela metade. Nada mal feito. Ou faz inteiro ou suma da minha frente que eu mesma faço. Mas era melhor fazer bem feito, porque a mãe era braba pra caramba. Debulhar amendoim para a mãe fazer doce. Debulhar pipoca que a mãe colheu, até fazer bexiga nas mãos, pra guardar nas garrafas pet - eram o estoque do ano.

Hora feliz era a hora de comprar roupa: no fim do ano, geralmente único momento do ano de fazer compras, salvo se houvesse algum motivo em especial. O par de tênis era usado até estourar, a roupa até não servir.

E a vida na roça não era ruim, não. Quando era adolescente, me sentia diferente porque era a única das colegas da escola que tinha essa vida, que trazia as mãos calejadas e nunca um esmalte nas unhas. Mas era assim que eu conhecia. E tinha meu tempo de estudar respeitado, absolutamente venerado pelos meus pais. Quando eu quis escrever um livro, nos meus dezesseis anos, o pai se virou para conseguir uma máquina de escrever emprestada, e respeitavam minhas horas de datilografia, mesmo na hora da novela. Se tinha prova na escola, a única tarefa era tirar o leite - resto do período livre para estudar. Ninguém faz barulho, ninguém atrapalha. Sempre foi assim. Isso quando não vinha a mãe ajudar, enquanto ainda nas primeiras séries, lá com o professor Avelino.

- Mãaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaeeee!
- Quêee?!
- Eu não consiiiiiiiiiiiigo essa conta de dividir que tem dois números no denominadorrrr!!!
- Mas tu nem tá ainda estudando isso!!! A tua tarefa é só com um número!
- Mas e se tiver dois na conta?! Eu querooooo sabeeeeer!
- Pare de chorar! Quando eu subir eu te ensino. Espere acabar de cortar essa lenha!

Tenho braços definidos da lida na roça mesmo, moça. Na academia eu só melhoro o que eu ganhei com a vida, com o que adquiri de experiência nada leve até meus 17 anos, até o dia em que passei no vestibular e no primeiro emprego, e saí de casa para começar a minha vida.

Engraçado é que o meu curriculum começou a partir daí... Não era certo eu contar tudo isso como experiência? Quem disse que isso não vale? Essa dureza me ensinou a persistir na tarefa por muitos anos, mesmo quando eu não gostava totalmente, a ver que dava resultado, a saber o quanto custava o sustento de uma família, a sentir no peito a tristeza quando via por algum motivo o leiteiro não vir e a gente perder tantos litros de leite sem vender, a sentir quando uma vaca ficava doente, quando o pai ou a mãe ficavam doentes. Me ensinou a fazer mesmo quando eu tinha nojo, da aparência, do cheiro, e a aprender que o nojo passava quando a gente se habituava. Me ensinou a respeitar a todos, me ensinou que lá na cidade as pessoas dependiam das coisas que eu e meu pai plantávamos, colhíamos, do leite que ordenhávamos. Me ensinou sobre a lei da oferta e da procura, quando passávamos tempos mais apertados por causa do preço do litro do leite, ou quando a chuvarada fazia o feijão que plantamos apodrecer na roça.

A vida do meu curriculum atual não conta essas coisas. Então eu saí de uma cidade, fui para outra, cursei uma faculdade, e por competência conquistei algumas coisas na vida, um emprego bom, algumas promoções, com pouca idade já alguns cargos de chefia, um salário melhor. Sou escritora, maquiadora, blogueira, gosto de moda, me considero uma pessoa conectada. Mas sou PA-TRÍ-CIA, não patricinha. Sacou o PÁ do meu nome? É isso que sou. Acompanhada de TRI. Coisas fortes. E aí alguém - um ignorante, no sentido exato da palavra, "aquele que nada sabe", olha de fora e diz:
- Aquela ali deve ter as costas quentes! Ou tem sorte, só pode!

Não, bem. Eu tenho caráter, competência e disciplina. São a minha maior - e melhor - experiência.
Obrigada, pai e mãe, pelo melhor curriculum que alguém pode ter nesse mundo de gente tão fútil.