segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A mesma língua

Suspeito que falamos a mesma língua,
você e eu.
Que talvez tenhamos a mesma
profundidade.
Que tocamos a mesma nota e,
quem sabe,
se nos tocássemos,
seria irretocável o tom.
É uma suspeita.
Que a língua que falamos
se reconhece
sem mais traduções
Assim igualmente clara,
assim limpa, sem deturpações
igualmente macia
quente, silenciosamente
suspeita.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Cápsula do tempo

Você, detrás desse silêncio,
me trouxe a poesia
veio até a rima, veja que ironia
e sem dizer palavra
falou de tantas coisas esquecidas
daquilo que adormecia 
Você me trouxe mais, 
nessa distância
sorrindo pelos olhos calmamente
trouxe a fantasia, o verso quente
e úmido, de coisas imorais
Ah, você me trouxe tanto
me fez a corda tensa, um canto
um tanto que me afrouxa
e que me amarra, que vai ficar
para sempre
ao menos aqui, na poesia
se não no que se toca
fisicamente



Patrícia Moresco

Debaixo dos pés do abismo

(2002)

Alguns rastros ficam na poeira sem que ninguém
veja quem os fez
Mas os rastros permanecem e já foram passos de alguém

Há no escuro um cheiro que diminui
o medo que se fez
Mas a alma engatilhada dispara e a máscara cai

Não importa se apague a lâmpada incandescente
que ontem acendemos
Uma lágrima que acende não se apaga facilmente

Alguns rastros não se deixam apagar e na poeira
ficam bem marcados
E nem o vento impetuoso desfaz a dor primeira.





Antítese

(2002)

Não eras nada, e eras tudo que eu tinha.
Vinhas com medo, e com o mesmo medo eu vinha.
Quando parei,
o meu olhar te vislumbrou, inteiro
e o teu gesto, ligeiro,
roubou o antigo mundo que sonhei.

Não eras nada, e eras tudo que eu tinha.
E tenho ainda, e a tua solidão é minha.
Enquanto esperei,
o vento trouxe a mim teu cheiro.
E o mundo, faceiro,
fez brotar o plano que eu te dei.

Não eras nada, e eras tudo que eu tinha.
E sem teu colo estou aqui, sozinha.
Enquanto eu sonhei,
a minha alma despertou primeiro.
E o sonho, verdadeiro,
fez doar-te o pouco que guardei.

Motivo

(2002)

Tu és como a face das flores:
tens perfume e desabrochas sempre
não importa se tens dor ou alegria.
E eu, que tenho medo deste teu perfume,
oculto o medo em meio à poesia.

Tu és como a onda nos mares:
teu movimento é diferente sempre
mas tens no peito a mesma busca intensa.
E eu, que tenho medo dessa maresia,
oculto o medo em meio à desavença.

Tu és como a areia das praias:
vais e retornas com as ondas sempre,
mas é por ti que a praia inteira existe.
E eu, que tenho medo desse itinerário,
oculto o medo num poema triste.

Tu és como a ave nos ventos:
podes cortar o céu tão livre, sempre,
mas tens apego à lassidão do ninho.
E eu, que tenho medo dessa calmaria,
oculto o medo em meu pulsar sozinho.


Sublimação

(2001)

Talvez seja só fantasia. Seria?
A tua boca aspirou o meu suspiro,
e alimentou meus delírios.
De repente,
já não somos nós.
Somos abstratos, nos ermos do sonho,
onde nosso prazer é a nossa paz.
Não existimos aqui,
nem em lugar algum deste mundo
Somente amamos
- é para isso que estamos aqui.

Um segundo e somos adormecidos,
figuras lendárias de um conto de fadas.
E estamos leves,
leves.

Mais uma vez

(2001)

Deliro no meu inconsciente,
renasço no abraço que não me envolve mais.
Transpiro, mais do que respiro,
quando penso em não pensar.
Onde está a chave do cofre do sem pensamento?
Mais uma vez, não ouço resposta.
Então me calo,
ouço apenas o ruído da lembrança.


Contemplação

Seria assim o meu olhar se te deixassem aí
sentado, no banco vago diante de mim:
um olhar profundo de perdão,
de lágrima e de soluço,
e de silêncio.
Eu te olharia como se entregasse o sonho,
como se jogasse flores,
e teria nos olhos os beijos que não te dei.
Se te pusessem aí, diante de mim,
este banco vago seria o teu altar
e eu daqui te louvaria, te louvaria.
O meu olhar para ti seria insano
e eu te contemplaria até o meu último segundo.

Talvez o meu olhar compreendesse a tua ausência.




[Publicado no livro Absoluta - Contos, Crônicas e Poesias, 2013]
Patrícia Moresco

Notas

(2001)

Teus cabelos ficaram presos na porta depois
da tua partida:
foi o meu castigo por ter te pedido a ausência.

E tinham perfume os teus cabelos!
E o ar impregnado de hoje restitui aqui
a tua presença
te deixando sempre detrás da porta fechada.

Tua presença hoje é como o fio do teu cabelo:
real e perfumada, mas solta da raiz.



Tudo bem, meu bem

(2000)

Tudo bem, tá tudo bem
amanheceu e estou tão bem
cantei uma canção velha demais
e me deu uma paz
Tudo bem, tá tudo certo
você me trata com respeito
eu fico assim meio sem jeito
(é que você me deixa tonta)
você me apronta e tudo bem
Tá tudo em cima
quase perdi o fio da rima
mas já estou aqui assoviando
mosca flutuando
tô aqui meio sonhando
é que a noite chegou
você me transformou
e tudo bem, tá tudo bem
Você me chama de meu bem
e tudo bem, tá tudo certo
eu sei que você está por perto
e eu curtindo essa loucura
você me procura
e eu cantando, eu tão bem
o dia passa, a noite vem
você assim ousado e moço
suspirou no meu pescoço
e me deixou maluca
Você ficou na minha nuca
e tudo bem, tá tudo bem
você já sabe que me tem
eu não me deixo parecer
mas você sabe perceber
Você chegando, eu te desejo
você me dá um beijo
eu nem te vejo
e você já me levou embora
não tem mais hora
pra gente acontecer
e depois eu fico aqui cantarolando
você aí zoando
Você abusa dessa minha embriaguez
a vai chegando
e eu desabo de vez
Você aposta que eu não sou tão forte
(a tua certeza é a minha sorte)
e tudo bem, tá tudo bem
eu sei que você vem
você me faz ficar tão zén
que me deleito nessa anestesia

Você sabe que me tem, e você vem
então tá tudo bem, meu bem.

Isto

(2001)

Isto, que me faz infante,
é o amor
que me torna errante
que me consome

O amor é isso
que me maltrata
que me traz à vida
e depois me mata

Isto, que me tira o sono,
é o amor que sinto
A saudade é um abandono
absinto

O amor é isso
que me traz enleio
que me acerta em cheio
com o teu sorriso

Isto, que me fascina
quer te recolher
quer teu corpo, homem,
no meu corpo de mulher.

Ritual

Era segunda-feira o dia
da estripulia
de recompor a ordem de antes do domingo
mas ela, a mulher
tinha um compromisso
na agenda da cabeça
um caso quase omisso
largou o avental, o espanador
precisava relembrar o seu valor
a roupa ficou no tanque, a louça
se pôs mais moça
num vestido justo
pintou os lábios, os olhos
um lindo penteado feito a muito custo
um pouco de pó na face
sentia crescer um fogo, um sonho
naquele impasse
de não saber se era correto o que fazia
o que queria
a delicada sensação de ser admirada
de salto alto, as pernas depiladas
como fazem as mulheres naquelas cenas
obscenas
e no silêncio do seu quarto deserto
o encontro acontece
os olhos percorrem vagarosamente
a cabeça aos pés
Você está linda neste vestido vermelho
a cor da sua pele, o seu cabelo
você ainda está tão moça
e o seu sorriso ainda é o mais belo
É uma mulher simpática, fatal
que cumpre o secreto ritual
de uma mulher sozinha vestida de vermelho
a se olhar no espelho.


[Publicado em Absoluta - Contos, Crônicas e Poesias, 2013]

domingo, 2 de outubro de 2016

Cápsula do tempo

Você, detrás desse silêncio,
me trouxe a poesia
veio até a rima, veja que ironia
e sem dizer palavra
falou de tantas coisas esquecidas
daquilo que adormecia 
Você me trouxe mais, 
nessa distância
sorrindo pelos olhos calmamente
trouxe a fantasia, o verso quente
e úmido, de coisas imorais
Ah, você me trouxe tanto
me fez a corda tensa, um canto
um tanto que me afrouxa
e que me amarra, que vai ficar
para sempre
ao menos aqui, na poesia
se não no que se toca
fisicamente




Águias

Essa coisa de ser livre
só no pensamento
é que vive

Não espero ter asas.
Pensar faz do infinito
minha casa.


sábado, 1 de outubro de 2016

Se fosse verdade

Eu sei que você sabe
isso tudo é cheio de verdade
a lente não engana, e tem o cheiro
que ninguém mais sente
tem os versos cheios de abismos
tem o riso

É tudo verdade o que existe
os olhos parados distantes perdidos
pintados de encantamento
botar no bolso, levar para casa
para a vida, para o fim do mundo
só para saber como seria

Como será que seria, 
eu me pergunto,
se toda essa verdade poetizada
de repente fosse mesmo verdade.