sábado, 30 de dezembro de 2006

Voto de Ano Novo

Véspera de Natal, desfazíamos as malas da viagem de férias e fazíamos novas malas para a viagem de Natal. A chuva havia dado uma trégua. Meia tarde, batem palmas no portão; quem ouve é o cachorro. Ouve-se um coro de três crianças.
- Feliz Natal, tia! Tem alguma coisa pra dar?
A minha cidade é uma cidade pequena, e é raro que apareça alguma criança ou outro pedinte. Mas o raro não é o impossível, e às vésperas de Natal toda criança deseja ainda mais alguma coisa. Nem que seja comida.
- Você tem fome? - pergunto.
- Sim.

Mentalmente, reviro todas as gavetas da casa em busca de um brinquedo, um caderno, um gibi que seja. Qualquer coisa diferente da necessidade básica da alimentação. Reviro minhas lembranças, meus conceitos, todos os valores guardados nas frestas abstratas da vida. Onde estão os restos de minha infância?
Sinto-me pequena.
É Natal.
Entrego um pão, um doce para passar no pão, um pote de balas e uma colher.

O ano termina. E o ano novo, que deveria ser novo, acaba por tornar-se igual ao ano velho. E nada vê-se de novo! A novidade está unicamente nas roupas novas das grandes festas de reveillon. De resto, tudo é resto. Acontece a involução.

De todos os votos que me vêm para o ano novo, e de todos os votos que emito, pensando bem, o que mais prezo é aquele que ainda não fiz publicamente. Que um dia, no ano novo, ou quem sabe - se é que ela realmente existe - numa nova encarnação, que seja num futuro remoto, mas que seja, o ser humano seja humano no sentido pleno da palavra. Que a violência deixe de existir, que as mães, pais e filhos deixem de morrer nas ruas, nas cadeias; que as próprias cadeias deixem de existir.
Desejo que, no ano novo dos meus tataranetos, talvez, não haja crianças pedindo de comer, nem às vésperas de Natal, nem em nenhum dos outros dias.

É este o meu verdadeiro voto de ano novo: que o ano novo aconteça
, enfim.

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Arquipélago

Meus olhos são espelhos para os teus reflexos invisíveis.
O meu poema aqui,
e este sorriso que tenho,
são as minhas armas contra a tua ausência.
Eu fico assim, hoje e sempre,
e o teu caminho se esparrama aos meus pés.

Meus olhos são canais para a tua correnteza.
Revejo o meu barco em naufrágio
e a minha fuga
leva-me sempre para a mesma noite
perdida, no meio desta ilha escura.


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Ainda

Ainda te espero como se viesses.
E, antes mesmo que o meu sonho acabe,
o dia amanhece.

Ainda guardo a flor que me deixaste
e que secou, como o amor que me juravas.
Mas de que chão havia brotado aquele ato?
Quanta verdade tinha a flor que me ofertavas?

Ainda ouço no caminho antigos passos
que reacendem a tua antiga beleza.
Só não mantenho a alegria daqueles tempos;
é toda morta, morta a natureza.

Ainda passo longas horas de lembrança
e o teu retrato, em minha mente, ainda existe.
E se ele pudesse, talvez me diria:
"Faz tanto tempo! Por quê ainda insistes?"


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Conto de Fadas

(16/11/2002)

A gente tinha aquela química louca
ele me beijava e eu estremecia
De tudo um pouco a gente conhecia
A gente nem sabia
Mas as palavras eram mel na nossa boca

A gente ria e cantava umas canções
e alguns instantes sem querer se entristecia
era a coisa mais romântica que havia
vinha tão claro, um abraço que insistia
e a gente comentava sobre as nossas sensações

A gente falava de pureza e de pecado
e se chamava de princesa e de felino
Ele era assim, meio menino
muito maduro, muito repentino
e eu me sentia segura pelo seu cuidado

A gente discutia alguma nota musical
e eu ficava boba olhando o seu sorriso
Ele tinha um jeito assim muito preciso
promessa de paraiso
talvez já fizesse parte do nosso mapa astral

A gente nao tinha hora, nao tinha prazo
mas tinha um sentimento difícil de conter
a gente conversava ate o sol nascer
(era uma loucura que tinha que acontecer,
nada nesta vida é por acaso)

A gente era mesmo muito parecido
discutia espiritismo, bilhar, reencarnação
falava de umas coisas que tinha no coração
era tão pura a nossa relação
que a gente ia embora com o peito enternecido.


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