sábado, 18 de outubro de 2008

Elemento Fogo

De nada adianta essa tentativa
coisa de esquecer, deixar pra lá
de querer se convencer que não vai dar
que não é ele, que não sou eu,
que a felicidade é uma armadilha
que essa coisa toda que brilha
pode ser só mais uma paixão
que não foi nada, que nada aconteceu

Não adianta nenhum tipo de revolta
nenhuma ausência, nenhuma falta de contato
se o jeito dele, o cheiro dele, o gosto, o tato
está tudo gravado num retrato
imaginário
se quando ele chega eu viro uma criança
se quando ele parte não some da lembrança

Ah, foi quando ele chegou que me perdi de mim
perdi minhas correntes sem nenhuma resistência
como quem se desse uma sentença
de ser feliz
quando me tocou a pele, a alma, a poesia,
a intimidade inteira, o prazer, a fantasia

Nenhum disfarce adianta mais, nenhuma alegoria
é uma divisão de águas, o antes e o depois
é uma coisa estranha que existe entre nós dois
é sempre uma vontade de ficar um pouco mais
de dizer vá em frente, me provoque
me beije, me toque
me faça tudo aquilo que não pode
me faça amor, me dê calor,
me deixe totalmente extenuada

Ah, não adianta, não adianta
essa saudade fica presa na garganta
pedindo para ser anunciada.

***

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Astronauta

Anoiteceu.
Quando vi, já estava lá a estrela.

Pelas ruas passam os homens;
os pássaros, fugindo da noite,
passam pelas vidraças.
Todos passam e somem.

Rabisco, no pensamento em branco,
um retrato abstrato de mim.
Os traços coloridos se mesclam
e me confundem.

Anoiteceu de repente,
a noite, uma brusca interrupção.
É a hora que passa, é o dia que passa,
é a vida que passa.
Todos os dias, coordenadamente,
os homens acendem suas luzes,
em filas, pelas ruas.

A estrela permanece,
naturalmente perdida,
inconstante, bela, cintilante.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Um homem

Dele, em mim eu trago o cheiro
o peso, a força, o gosto
o hálito, a luz dos olhos,
umas marcas roxas

Eu trago palavras e temperança
a lembrança pura
um pedaço da face iluminada
pela luz artificial na noite escura

Trago poemas de quem chegou
um pouco tarde
um meio sorriso, uma inteira verdade
um amor clandestino
uma saudade

Eu trago a alma, um pedaço de vida,
a mão que afaga.
Dele,
eu trago em mim o que nunca se apaga.

domingo, 20 de julho de 2008

Companheira Solidão

ah, companheira
eu e você nessa noite inteira
ontem, amanhã, você aqui comigo
não tem nenhum perigo
porque eu estou assim no seu cuidado
ah, companheira
fica do meu lado
que eu não quero nenhuma choradeira
estar só não é um tédio,
é uma inspiração
veja, companheira,
pulsa meu coração
e eu escrevo assim dessa maneira
obrigada, companheira
por me dar esta canção

Castelo de Areia

Escuta, não vamos derrubar nossos brinquedos
no chão, porque eles podem se quebrar.
Porque a minha devoção por você é maravilhosamente grande
então fique quieto, fique quieto,
não fique proferindo estas palavras que me ferem
vamos continuar a nossa brincadeira
e eu te empresto os meus lápis de cor
e a gente faz estes desenhos coloridos
e cola na parede
Então escuta, guarda a sua espada,
que eu não quero estes brinquedos que machucam
me diz por quê
você tinha que vir agora com esta brincadeira louca
que pode me fazer doer na alma
sabe que a alma quando sangra nada estanca
guarda a tua espada, guarda,
vamos brincar de plantar flores no jardim
Eu quero continuar brincando de louvores
pelo que você é, minha criança,
e o altar que eu fiz pra você
não quero desfazer
Porque o castelo de areia que fizemos é lindo mas,
é frágil
e você não pode brincar tão agressivamente
porque corremos o risco de ter que começar
tudo de novo
Então larga a tua espada, meu menino,
vem brincar de ser meu amiguinho
vem, vamos brincar a vida inteira,
senta aqui e pega o lápis amarelo
desenha o sol que eu desenho o céu azul
e a gente cola isso na parede
do nosso coração
pra nunca mais anoitecer
dentro de nós

Soneto pelas flores no trilho do trem

Vem de algum lugar profundo uma incerteza.
Passarão os dias. E passará este nó?
Vem a voz do inconsciente com a brutal leveza
de quem derruba um muro com um sopro só.

De dentro de mim eu ouço, nitidamente,
a terminal acusação a um fraco réu.
O tribunal da vida age implacavelmente:
pega as lembranças bonitas e as lança ao léu.

Tudo me vem dançando como numa alegoria
em pequenos filmes que eu preferia não ver
porque me fazem pequena, envergonhada, fria

Mas a lembrança do aprendizado inda me vem.
Deve haver razão futura a compreender
para todas as flores lançadas no trilho do trem.

Sexaholic

vez em quando é preciso uma coisa
um gesto, umas algemas
umas chaves tetra
camisas de força
só de vez em quando, querido

vez em quando um susto
um salto, uma seita
uma cinta-liga

uma ronda, umas rendas
uma rendição
é preciso uma arma, querido
ou uma inspiração

vez em quando fogo,
de velas, de veias
essas coisas todas de cinema

é preciso saber que vez em quando
me surgem desejos maiores
de bebidas fortes, licores,
e outras coisas impróprias para menores

sábado, 10 de maio de 2008

Uma luz que tive

Tinha a pele macia e de um leve bronzeado permanente. Tinha a forma humana. Na altura dos ombros, desciam-lhe uns cabelos negros, alinhados, ora ornados de algum enfeito daqueles comuns às menininhas. Era uma menininha. E acreditava num anjo da guarda.

O que mais me lembro são os olhos que tinha. Eram uns olhos pequenos, escuros, as sobrancelhas torneadas, e tinham um brilho... ah! um brilho! Tinham uma luz.

Apareceu-me numa daquelas época da vida em que tudo o que se faz é o que não se queria fazer, quando se é jogado como um dado, ao acaso. E deu, no resultado dos dados, as duas faces seis. Era a jogada máxima; foi assim que a pequena luz entrou na minha vida.

Quando se apagavam as minhas luzes - da rua, do quarto, da alma - ela conseguia reacendê-las, todas, com uma palavra. E ela nem sabia que as acendia. Era sua varinha mágica, de fada morena; era a vontade que tinha de fazer que o mundo estivesse sempre iluminado.

Dizia-me das dores e dos caos interiores. Eu não tinha luz para lhe dar, mas podia, quando possível, entregar-lhe um abraço com umas palavras e uns suspiros - "amiga querida!"

Os Verões eram nossas épocas preferidas. Nos verões, captávamos luz do céu, do reflexo das águas que achávamos por perto, dos copos de coca-cola, dos vidros das vitrines. Usávamos roupas coloridas e acessórios, alguns que ela mesma idealizava. Fazíamos pequenas festas íntimas com humildes comes e bebes, chás muito doces, pipocas. Fazíamos a lista do próximo acampamento. E para os invernos, para que não nos deixássemos abater por completo, tramávamos filmes, sopas e vinhos.

Mas os verões eram mesmo a nossa morada. Nos verões éramos felizes, tínhamos histórias, risos e fotografias. Tínhamos planos, ondas de mar, areia e uma pousada aconchegante. Nos verões sim, nós éramos nós.

No início dos verões, ela sempre me vinha com umas idéias novas, umas revistas de arte, uns cursos novos que encontrara em algum lugar, umas pedrarias. Quando a distância nos separava, eram umas fotos que iam de um lado para o outro, mostrando as coisas novas que aprenderamos, trocando idéias, elogios e experiências.

Quando tínhamos uma dor no coração, a outra dizia sempre: "logo passa!" Quando tínhamos idéias contrárias, brigávamos heróicamente, com direito à mágoas passageiras que sempre resultavam num lindo pedido de desculpas.

No início do último verão, ela me deixou. Foi arrancada como uma planta florescida, ainda cheia de cor e perfume. Eu não pude ver o último brilho que saiu de seus olhos infantis. Eu não pude dizer que foi tão tola a nossa última briga heróica, nem dizer a ela, como dizíamos: "logo passa!" E foi porque, daquela vez, não passou.

Desde aquele dia, não houve nenhuma luz que me pudesse acender. A luz externa é artificial, não é como aquela que tínhamos outrora. É possível que tenha sido ela a única luz de toda a minha vida; e sinto que, talvez, seja provável.

Quando chegar o início do próximo verão, eu sei que chorarei o aniversário de sua perda. As fotografias todas que ficaram aqui, registrando as alegrias de todos os verões, não serão nunca igualadas. Eu tenho agora uma dor escondida, uma escuridão, algumas olheiras e muitas revoltas. E uma vontade de correr sem rumo pelo mundo. Correr, correr, correr.

O breve instante de uma despedida talvez dure uma vida inteira. O breve ato que apaga uma luz que morre talvez apague para sempre outras luzes que vivem. Tinha uns olhos pequenos, um sorriso imenso, um coração de criança que defende a vida a todo custo. Uma criança que perdoa. O nome dela quase rimava com um verbo forte, no imperativo afirmativo: AME!

Agora estamos no inverno, com sopas, filmes e vinhos. E a taça que ela gostava de usar será para sempre a taça que ela gostava de usar. Todos os sabores habituais ganharam um tempero que se chama "lembrança dela".

Agora estamos no inverno, e todas as luzes ficam mais ofuscadas.
"Não fique assim, amiga! Logo, passa!..."

domingo, 6 de abril de 2008

Zona Perigosa

Eu corro este risco muito sério do perigo
o risco dos teus olhos
bicho indomável fechando o cerco
alta tensão

Eu corro este risco, ventas de dragão
o risco do toque da tua mão
da minha e da tua chama que se cruzam,
contemplação

Eu corro o risco constante da fraqueza
da queda da armadura
da revelação

Eu corro este risco enorme do momento
do instinto, do nó na garganta
do impulso passional que se agiganta,
do coração

Eu corro este risco do grito sufocado
do sorriso que nasceu sem ser chamado
do entardecer, da súbita paixão.

...

Poema Flutuante

Como são ricos teus olhos de abismo
cataclismo de luzes
grandes espelhos convexos
de paciência
Como são ricos teus olhos de fonte
e meus poemas, folhas deslizantes
vitória-régia
pra tua doce maresia

E agora,
e antes de tudo, e algum tempo depois,
nasce um bucólico poema para ti.
Porque só contigo os campos ficam verdes
e as flores todas me inebriam o olhar.

...

Apocalipse

Deixa que deságüem no mar nossas veias
e que fiquemos aqui, enfraquecidos.
Estáticos, inacabados,
que nem um sopro se mova sobre nós.
Reclina tua cabeça no meu peito;
deixa que lá fora o vento sopre,
mas só lá fora.

O silêncio aqui nos envolve como prece.
Nossos olhos descansam,
pulsa um mundo dentro de nós.

Deixa que deságüem no mar nossas veias
e permaneçamos imóveis,
teu corpo abandonado do meu lado.
Gregas estátuas, anjos decaídos,
diamantes enfim lapidados,
consumidos.

...

Perpetuação

Silêncio:
grito para dentro
de si mesmo.
Recusa
procura
angústia
olhar a esmo.

Amor, amar:
silêncio.
Pedra que cai na água
teto desaba.

Silêncio:
uma falha.
Grito para dentro,
lágrima.

Tudo se esvai.
Só o amor
não sai.

...

Fabrizio

Fabrizio olha nos olhos e me domina
tem um jeito lindo de me desconcentrar.
Vez em quando ele só passa
que nem fumaça
não tem só reflexo no olhar.

Fabrizio fala de coisas que não sei
e tem uma ciência singular.
Vez em quando ele me esquece
desaparece
só fica uma saudade em seu lugar.

Fabrizio anda sozinho pelas ruas
mas sempre tem alguém a lhe esperar.
Vez em quando se liberta
me põe alerta
e a gente faz um filme sem notar.

Fabrizio sabe ouvir com paciência
e tem um jeito doce de falar.
Vez em quando ele sorri e fica sério
é só mistério
um pouco de loucura pelo ar.

Fabrizio na verdade não existe
o nome eu inventei, pra divagar.
Vez em quando eu fico assim, na maresia
nasce uma poesia
palavras impossíveis de calar.

...

Fragata

Busquemos, querido,
ancorar nossa barca antes do anoitecer.
Sentemos então, e enlacemos as mãos.

Depois pensemos aonde desejamos ir;
preparemos a partida para o amanhecer.

Em casa eu deixei todas as coisas
que muito me valiam.
Por isso relembremos os nossos motivos
e sempre averigüemos a sua veracidade.

Enquanto ancoramos a barca eu observo
a força do teu braço, querido.
E penso nas coisas que também deixaste.

Querido, é isso o amor. É isso o amor.
Fiquemos juntos e sigamos viagem.

...

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Leveza

É leve a lembrança que tenho da força
das tuas mãos.
Leve como brisa.

Leve como o suspiro que me tomas,
como a paz que, de mim, levas
quando partes.

É leve teu gesto.
A tua palavra é leve, e o som dos teus passos
mais leve.

E a dor que me toma o peito
e o peso do meu corpo estendido
e a forma como se fecham os lábios,
tudo é leve.

É leve a certeza que tenho
da tua presença.
É leve e assim, tão leve,
que nem a sinto.

...

Guardando tesouros

Em tempos de assaltos em toda esquina, sabe como é: cada um deve se ocupar de bem cuidar do que julga valioso. E cada um tem um tesouro em particular, e o tesouro de cada um me parece coisa interessante de ser observada.
Outro dia, por exemplo, numa manhã razoavelmente quente, ainda no início do outono, na seção de frutas de um grande supermercado da cidade, tive uma visão apocalíptica. Uma moça bela, de longas pernas, calçando grandes botas que iam até os joelhos - e as botas com grandes saltos -, vinha num passo largo, os cabelos loiros jogados para trás na velocidade da caminhada, relativamente rápida. Tinha uma pose do tipo Gisele Bunchen, com os braços naquele balançar de passarela, quase um ângulo de noventa graus em relação ao tronco. A ultra-minissaia rodada quase permitia ver a cor da peça íntima e, ignorando o ambiente fechado em que estava, a moça deixava ainda que o nariz suportasse um enorme óculos escuro.
Não tive como não parar, não foi culpa minha. A moça era, deveras, bela, e ali, parada, observei-a, em conjunto com a reação de todos os que perceberam tal presença. Eu passava os olhos críticos e fotográficos pela criatura que se aproximava, tentando entender se seria aquilo uma pegadinha do Faustão ou um desfile de moda em meio às frutas, à Carmem Miranda. Ou se, simplesmente, a bela moça resolveu sair de casa, domingo pela manhã, como eu, para comprar, dentre tantas coisas, uma penca de bananas.
No enleio em que me encontrava, nem reparei que a moça vinha em minha direção. Quando saí do estado de choque, percebendo que o impacto aconteceria, retirei bruscamente meu carro de compras do caminho por onde ela vinha, furacão de botas com seus braços sacolejantes.
Enquanto se aproximava, vi que trazia, imediatamente atrás de si, um moço pouco menor, com semblante sério e preocupado. O moço olhava o ambiente ao seu redor como se sentisse a ameaça iminente, como o bicho que protege a cria, que só não a carrega como os cangurus por fatores adversos da natureza. Assim que passou a moça, o moço, cumprindo o papel que lhe foi destinado, fitou a mim com os mesmos olhos de fúria que viam os outros expectadores:
- O que foi? Nunca viu?
Em tempos de desapropriação de terras não cultivadas, é sempre bom protegermos o terreno. Estar alerta, no incansável plantão de quem jamais se permitiria perder o que é seu.
Semana passada, novamente no domingo pela manhã, no mesmo supermercado, avistei a moça que passava, com os mesmos óculos sobre o nariz, os braços ainda sacolejantes. Quando associei a figura com a lembrança, movimentei-me, naturalmente, pelo corredor, e nem me prestei a cuidar se era ainda ultra a minissaia. Na maioria das vezes, a figura do guarda-costas é bastante intimidante; preferi não arriscar. E tomei para mim uma grande lição: é preciso coragem – muita coragem – para a guarda eficiente de um grande tesouro.
...

terça-feira, 1 de abril de 2008

Máxima Tentativa

Eu tentei abrir
a porta do céu da tua boca
com a minha ânsia louca.

Só depois te vi sair
de dentro da minha oração.
Era a minha devoção.

Eu tentei fugir
de dentro da minha mente
fui cigana, fui serpente

Só depois te vi cair
pra dentro do meu jardim.
Era o que faltava em mim.

...

Popularmente Falando

Passa o feijão,
você aí do outro lado da mesa
mas passa logo porque a mesa é grande
até chegar aqui posso morrer de fome

Passa um pãozinho
você aí tão farto e sossegado
mas passa esse pãozinho com cuidado
que aqui tem muito irmão passando fome

Passa o feijão!
A sua mão, fechada, é assim tão dura
ou você está fingindo não escutar?

Passa esse pão!
Não dá pra dividir tanta fartura?
O prato aqui já dá pra se espelhar!

Passa, meu irmão
Passa o feijão!
Só isso que eu estou a lhe pedir
Não vou ameaçar seu caviar

Passa, meu irmão,
pouco de pão
que aqui a gente sabe repartir;
tem muita boca seca pra molhar.

...

segunda-feira, 31 de março de 2008

Primeira Incrível Aula de Atendimento ao Público

Antes de iniciarmos, é preciso alertar que essa não será uma tarefa fácil. A arte do Atendimento ao Público é para poucos, e é melhor perguntar a si mesmo se realmente deseja conhecê-la. Muitos não resistem. Faça um minuto de silêncio, e decida.
Se você optou por continuar, vamos começar. Serão três lições do nível básico, que devem ser praticadas religiosamente. Respire fundo, e vamos lá.

Caso 1: O telefone toca, você atende, dizendo de onde fala e se identificando. Em seguida, vêm as perguntas:
- É da onde?
Você repete a resposta.
- É quem?
Você repete o seu nome.
Lição do Caso 1: Contenha-se. O nome que você deve fornecer é sempre o seu nome verdadeiro. Você pode até pensar em outro nome, mas nunca diga o nome que pensou.

Caso 2: O telefone toca, você atende, e a pessoa do outro lado pergunta, equivocada:
- Olá! Você poderia me fornecer o telefone do advogado, o Jânio Quadros?
Você pode até pensar em pedir a ela que telefone para São Pedro, mas não é o correto. Informe apenas que o sobrenome mencionado está incorreto e forneça, então, o telefone.
Lição do Caso 2: Contenha-se. A resposta que você deve fornecer é sempre a resposta verdadeira. Você pode até pensar em outra resposta, mas nunca diga a resposta que pensou.

Caso 3: Você atende a um cliente que veio pessoalmente, cheio de papéis de uma empresa. Você pergunta, no meio da conversa que envolve nomes dos sócios da empresa:
- E o senhor, o que é?
- Eu sou o marido da minha esposa.
Bem, este é um caso um pouco mais complexo. É preciso raciocinar para compreender o que acontece no universo ao seu redor, e fazê-lo com extrema rapidez. Você então associa a pessoa que está à sua frente com os documentos que ela porta, e deduz que quis dizer que a proprietária da empresa é sua esposa.
Esta tarefa, lida assim, em poucas palavras, também me parece um tanto impossível. Mas acredite, você ainda aprenderá lições bem mais difíceis do que esta.
Lição do Caso 3: Contenha-se. Os dentes de um atendente devem ser, preferencialmente, reservados para a tarefa de mastigação, e só devem ser mostrados em risos fora dos atendimentos. Você pode até sentir que o riso nasce nos músculos faciais, mas o exercício do autocontrole é imprescindível nestes momentos.

Atender bem ao público é uma arte! É preciso treinar a respiração vagarosamente, fortalecendo o músculo do abdômen, sentindo lentamente os pulmões. Repita a série de memorização das três primeiras lições, e estará apto a enfrentar a próxima aula. Até lá!

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sábado, 29 de março de 2008

Vulcânica

amor,
eu me acho de novo naquela fase
fértil, louca, criativa
de querer pintar as nuvens de lilás
e descolorir todas as flores do jardim
de andar descalço, de te ferir
de marcar em ti meu nome com navalha
só pelo prazer da tua ira

ai, bem que tu podias
pensar alguma coisa nessa linha
umas flores negras, verdes ou azuis
colhidas numa terra inabitada
com um bilhete junto
“amor, corri tamanho risco
perdi cabelos, unhas, passei fome
só por essa flor que ora te entrego”

amor,
eu ando outra vez com aquelas vontades
de impossível
bem que tu podias, bem que podias

não olha assim, que eu não sou perigosa
o espinho da minha rosa
se derrete quando tocas.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Progressão

Eu era metade.
Depois vieste tu, e a tua malícia que não transparecia,
e teus tênis cor de cinza
e uma vontade de vida que te corria na veia.

Então, fiquei uma.
Mulher inteira que estremecia
no teu olhar.

Depois, bem pouco tempo,
veio a tua roupa para o meu armário.
Veio o teu corpo para a minha cama
o teu sonho para dentro do meu sonho
e as tuas fraquezas me transpareceram.

Veio a tua vitória, transbordante,
para a minha taça de vinho.
E o teu talher para a minha boca.

Vieste tu, depois,
a contar mais um para o meu ímpar numeral.
E ficamos dois.

E a nossa conta se programa e cresce.
É lenta a nossa progressão,
mas acontece.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Uns Olhos

Hoje eu vi uns olhos
que eram teus.
Olhos de lembrança.

Eram de menina,
olhos emaranhados de fios de esperança
aconchegados, no meio da face calma.

Tinha o mesmo brilho nos olhos que eu vi.
E cada um trazia, na dobra do canto externo,
a mesma ruga pequena, de jovem que eras,
causada pelo mesmo sorriso ameno.

Olhos de quem ama.
Eram olhos de quem sente a vida
e que a vida era, por mais que sofrida,
aquela coisa boa de se sentir.

Hoje eu vi uns olhos,
que eram teus.
Eram assim como eu guardo na memória:
doces olhos de menina grande,
pura fonte de uma luz que nunca cessa.

sábado, 8 de março de 2008

A Maravilhosa Tecla SLEEP

Na noite do meu aniversário, envolta em tamanha e solitária emoção de pensar em nos anos idos, apanho, da cabeceira da cama, o controle remoto da televisão. Ligo e procuro por alguma coisa que esteja no ritmo dos meus pensamentos: velozes, mas silenciosos; e encontro. Ali, do ninho que me acolhe em todos os finais de dia, divago de um sentimento que, como em todos os aniversários, faz em mim uma louca vontade de rir e de chorar, de fugir e de ficar, de prometer sem mesmo saber se poderei cumprir.

A idéia do passar do tempo é sempre assustadora. É quando o espelho não responde da mesma forma pela mesma pergunta, nem mostra a mesma imagem para a mesma figura. É quando nos tornamos também espelhos, e não refletimos também da mesma forma a mesma figura; tudo se torna um grande paradoxo. O passar do tempo é sempre uma negação de nós mesmos. Com o passar do tempo, alguns conseguem transformar a passageira beleza exterior em grandeza interior, aquela que não se perde; outros, nem isso. Alguns escrevem livros, outros gravam discos.

Os aniversários são datas conflitantes. Conheço uma mulher que não guarda nenhuma fotografia, pela simples idéia de que, não tendo a lembrança de como era, minimizará a dor dos anos que passam. Há quem consiga dizer com sinceridade que comemora cada aniversário; há os que, como eu, não conseguem passar um só aniversário sem questionar a razão da existência da humanidade, da pólvora e do colesterol ruim.

Mas as fotografias são coisas que muito me aprazem. No álbum amarelo de minha mãe, está uma foto em que ela, linda, recebia uma faixa e uma coroa de Miss. Bendita foto! Se não fosse a foto, seria difícil de imaginar! Através das fotos, a cada ano que passa, consigo contar, além das velas no bolo, uma linha de expressão a mais no canto externo dos meus olhos. E o que isso muda em minha vida, além da aparência e dos potes de creme no banheiro?

Eu sempre me convenço de que o passar do tempo deve nos fazer melhores. Além de tudo o que quisera mudar em mim, há a esperança de que possa mudar também no mundo, na minha cidade, na minha casa. Sempre começando pelas pequenas coisas. Adquirir conhecimentos novos me dá uma boa esperança de alcançar este objetivo, porque sempre me abrem caminhos novos e novas oportunidades de usar a varinha mágica em alguma situação. E é difícil mudar o mundo... a justiça é uma palavra que parece pesada até para pronunciar. JUS-TI-ÇA! Dá um nó nas cordas vocais! Vez ou outra a gente comemora, no aniversário, o encontro de alguma pessoa que consegue pronunciar essa palavra sem engasgar, em voz alta e forte.

Ai, que pensar é uma coisa que, além de fazer o tempo passar mais depressa do que já passa, pode tirar o sono. Nem sei porque a televisão está ligada, se não há espaço para mais nada no ambiente além das bolhas de pensamento que liberto! Mas a ausência da televisão faz um silêncio tão angustiante!

Nessa altura da madrugada, quando já é o dia seguinte ao meu aniversário; quando, cansada de pensar, decido dormir, me vem uma lembrança maravilhosa: em algum lugar, em algum momento, num tempo passado, alguém criou a maravilhosa tecla Sleep. Está lá, sempre em algum cantinho de fácil acesso no controle remoto. Beleza de criação! Deve ter sido alguém que, como eu, tinha medo do silêncio angustiante que se faz imediatamente antes de dormirmos.

Só um toque e, agora sim! Dou-me um prazo de quarenta e cinco minutos para dormir. Enquanto isso, o pensamento relaxa acompanhado, no mesmo ritmo, das vozes que escolhi para me fazerem dormir.
E boa noite!

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Menino

pega
e joga fora toda dor que existe
joga fora o que te deixa triste
que o teu sorriso vale mais, menino,
que tudo que te possa machucar

pega
e joga fora o velho itinerário
joga fora esse retrato imaginário
que a tua estrada é bem maior, menino,
que tudo o que te pôde magoar

pega
e joga fora o que te traz angústia
joga fora tudo o que te assusta
que a vida é bela e bem melhor, menino,
quando a gente se permite amar.




domingo, 27 de janeiro de 2008

Carta de desculpas por um erro de concepção

Quando eu era adolescente, era esse o motivo constante das nossas discussões. Era a sua frase predileta: “o que os outros irão pensar?” E você fazia questão de enfatizar ainda quais seriam as possibilidades de pensamento que poderiam nascer dos “outros”.


Ah, pai! Era um tempo tão bom aquele em que eu tinha certeza de que você estava errado! E eu sempre dizia a você que quem se importa com o que os outros dizem são as pessoas sem personalidade, que eu não me importaria nunca e que eu era assim, feliz, por pensar em viver sem, jamais, me fixar no que “os outros” pensariam ou deixariam de pensar.

Mas os anos passaram, pai. Nem tantos anos assim... Mas o fato é que estou aqui, para lamentavelmente dizer que outra vez você tinha razão. E eu reconheço que você sempre teve razão. De repente, fui arremessada para dentro de uma estúpida máquina que tem por objetivo avaliar os defeitos alheios. E então ficamos aqui, eu , você e todas as pessoas, os meus amigos, os meus vizinhos, os meus irmãos, todos nós absolutamente, escravizados pelo maldito julgamento alheio.

Eu vejo as coisas acontecerem e isso sempre me faz lembrar a sua bela frase. Eu sou hoje exatamente aquilo que você queria que eu fosse: eu não tenho personalidade. Eu me perdi de mim. Eu leio coisas consideradas corretas. Não bebo, não fumo. Não costumo sair. Escrevo compulsivamente, mas geralmente as minhas revoltas ficam engavetadas, e costumo publicar os textos mais leves. Visto-me para causar boa impressão. Não penso em grandes aventuras, levo uma vida pacata, tenho uma ocupação normal. Vou ao mercado, cuido das minhas plantas e penso em ter filhos.

Mas eu não digo que você estivesse errado, pai. É bem provável que eu também queira isso para os meus filhos, quando os tiver. O problema não está no seu pensamento, que foi moldado pela vivência e certamente por alguma experiência concreta que você teve. O problema está em todos nós. Uns, por não saberem se auto-afirmar, por perderem a sua identidade com medo do temido tribunal. Outros, por não enxergarem o que está por dentro. E por se contentarem em enxergar uma capa sem nunca terem lido o livro. Ridículo engano! “Os outros”, como você dizia, nos têm nas mãos. Um comportamento inadequado pode lhe render a perda do emprego, do namorado, de um amigo. E pode ser que você seja rejeitado em um novo ambiente, porque certamente alguém já ficou sabendo que, há uns dez anos, você fez um porre e amanheceu na sarjeta. Um momento de distração na sua vida pode lhe render, no mundo dos humanos, um eterno julgamento.

Era esta a sociedade da qual eu tanto queria fazer parte, você lembra? Quando você me dizia a sua célebre frase, eu lhe respondia: um dia vou ser independente! E hoje sou, verdadeiramente. Independente de você. Mas eu sinto muito por isso, pai. Eu peço perdão a você. Eu era bem mais feliz naquele tempo, quando ainda acreditava que era você o único errado da minha história.

Bicho Papão

por Patrícia

Dos tempos de criança, eu guardo muita coisa. No fundo do quarto de visitas – hoje, um velho depósito de lembranças e quinquilharias – guardo, por exemplo, um baú com muitos objetos daquela época. Numa tarde chuvosa em que me permito o ócio, sou surpreendido pelo pensamento. Vejo o baú e, inevitavelmente, a máquina do tempo é ligada; sento-me e revejo cada pedaço do meu passado.

Çarungaua – sim, é este o nome - foi o meu primeiro livro. Era um pequeno índio que procurava, incansavelmente, pelo seu nome. A história é bastante complicada para ser lida aos seis anos de idade, e confesso que só consegui realmente entendê-la quando tinha lá meus treze anos. Ali, sentado, olho cada figura, cada detalhe. Releio. Lembro-me de como foi difícil pronunciar, pela primeira vez, o título do livro. Çarungaua, o menino que vivia “no tempo em que macaco era gente e bicho falava”. E o seu nome estava inscrito numa pedra, que foi carregada por um urubu!

Olho para os brinquedos, muitos aos pedaços, que guardei para o caso de eu ter um filho. Para o meu filho eu daria todos os brinquedos de que mais gostava, leria todos os livros e cantaria todas as cantigas – até as que não sei. Mas os filhos... como tê-los? Sacudo a cabeça rapidamente; dizem que isto muda o pensamento. Sigo olhando tudo, absorvendo cada detalhe.

O pensamento volta. Por que eu tinha de olhar este baú? Filhos... Como tê-los? Penso em como a criança alegre que fui pode ter se transformando num homem assustado, solitário, que passa algumas tardes narrando sua vida a um psiquiatra. É preciso entender! Volto a pensar; o ócio sempre me faz refletir demais, além do que quisera.

Os medos, penso nos medos. Não os que tenho, mas os que já tive; os que podem ter sido a causa dos meus medos de hoje. Mas eu tinha tão poucos medos! Medo de perder o ônibus que ia à escola, de gaguejar no teatro da Igreja, de furar o pneu da bicicleta quando saía para longe. Não pode ser isso; penso mais. Enquanto penso, troco as pilhas do velho despertador. Acerto a hora, ouço o tic-tac incansável que me reforça a sentença: tempo-passa, tempo-passa, tempo-passa... Penso mais. Lembro mais. Quando bem criança, daquelas que ainda não conseguiam ler o Çarungaua, eu tinha medo do escuro. Não porque fosse escuro, porque não pudesse ver; mas porque, em algum momento, ouvi uma cantiga que falava mais ou menos assim: “Nana, neném / Do meu coração / Não tenhas medo / Do bicho-papão”... Deve ter sido neste momento que entendi que o bicho-papão existia, mas que não era preciso ter medo. Mas onde estaria? Era sempre um mistério. Quando apagavam-se as luzes do quarto, um feixe de luz que vinha da rua deixava ver ainda as paredes, e em nenhum lugar eu via o tal bicho. Só restava que estivesse embaixo da cama; por isso, nunca encorajei-me para olhar. Deixássemos lá o bicho, já que, não o tendo visto, nunca me havia feito mal nenhum. Volto para a minha realidade. Os filhos... Como tê-los? E, se os tivesse, teriam também eles medo do bicho-papão? Teriam gostado de ler o Çarungaua? O baú à minha frente traz à tona, outra vez, uma vontade enorme de ter filhos. Se eu, nesta tarde chuvosa de ócio, tivesse saído à procura de uma mulher, quem sabe teria um filho no próximo ano. Mas ainda sinto medo, e é melhor não olhar para debaixo da cama.

Penso no dia de ontem. Numa rotina matinal inconsciente, liguei a televisão e ouvi o jornal enquanto tomava um café feito às pressas. Pensei em como, todas as manhãs, saio de casa com o medo de ser a próxima notícia dos jornais. Pensei, como em todas as manhãs, que na próxima manhã ouviria um CD em vez do telejornal. Mas eu já disse: era uma atitude matinal inconsciente, e, nesta manhã repeti o ato, o pensamento e a promessa. Penso novamente que, amanhã, ouvirei um CD de música erudita.

Fecho o baú; é triste lembrar. Por que toda lembrança me parece triste? A consciência do tic-tac que repete tempo-passa, tempo-passa começa a se tornar incômoda; retiro as pilhas do despertador. Busco pelo jornal impresso atirado, nesta manhã, na minha garagem. Leio a matéria de capa. Triste notícia! Cada página virada é uma angústia que se forma, inclusive a do resumo das novelas: morre, na ficção, o meu personagem favorito! Foi assassinado. Quem o matou?

Triste, triste. O homem triste que se alimenta dos meus medos entende que absorve as dores do mundo. As dores que estão nos telejornais, nas páginas das revistas, nos desenhos animados japoneses. As dores vêm em carros desenfreados, em ataques de fúria, em desejos de vingança, em desejos de poder. Vêm nos projetos assistencialistas, ambientais, e em tudo o mais de belo que se criou na tentativa de eliminar um mal que já existe. As dores vêm, vêm, e o homem que se alimenta dos meus medos se torna triste, e volta a sentar-se em frente a um baú cheio de lembranças de um tempo feliz, esperando ansiosamente pela próxima visita ao psiquiatra.

Volto a colocar as pilhas no relógio. Tempo-passa, tempo-passa, o tempo passa e tudo o que está no baú continua tão lindo quanto foi um dia. Na verdade, esta tarde chuvosa de ócio faz em mim, enfim, uma conclusão: tudo permanece igual, exatamente como quando eu ouvia a cantiga do nana neném. Os brinquedos todos estão ali porque eu os guardei; os livros todos estão intactos, porque eu os valorizei. Quanto aos medos, só o do bicho-papão é que ainda permanece, agora não debaixo da cama, mas ao meu redor, escondido detrás dos olhos de todos os que sofrem.

E, com tanto medo, fito o baú e outra vez murmuro:
- Filhos... Como tê-los?

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Poema em Branco

Eu trago um poema que não consigo escrever.
E ele me bate à porta do peito,
e à porta da alma,
e à porta do quarto,
e todas as portas onde bate se abrem.

Mas escrevê-lo... Como se faz?
Não conheço as palavras.
As palavras se foram!

Eu trago um poema, e o trago
preso pela mão.
Não uso correntes, não há chaves;
apenas estendo meus dedos,
e ele me segue.

Mas as palavras...

Eu trago um poema tão tímido,
que não se deixa escrever.

...

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

De Pato Branco pra Pasárgada, daí

No tempo do Manuel Bandeira, ir-se embora pra Pasárgada era uma coisa bem mais romântica e pacífica. Era coisa como pegar uma condução ou um trem ou um navio, e no meio do caminho ir-se vendo, perplexo e apaixonado, a natureza ao redor e todo o seu querido burburinho. Tudo bem, vá lá: as próprias Pasárgadas de hoje não são como as de antigamente, e é preciso se contentar com um pouco menos. Mas chegar até lá... ah! Chegar até lá é que é o grande problema.
Vou comprar minha passagem pra Pasárgada, logo pela manhã:
- Quanto tempo de viagem?
- Em torno de quatro horas, porque é pinga-pinga.
E a moça me olha, séria.

Tudo bem, estou em paz. A manhã começa e tenho uma semana toda pra ficar zén lá na pequena, tranquila e solitária Pasárgada querida. Mas pinga mesmo, mal sabia ela, era coisa cujo cheiro eu ia sentir num bom trecho da viagem.

A estrada que me leva pra Pasárgada anda cheia de buracos e não tem acostamento, e vai num empurra-empurra que torna o pinga-pinga bem mais molhado e barulhento, quase uma goteira enorme. Entre golpes de bolsas e mochilas e um esfrega de grandes nádegas que passam pelo corredor estreito, meu braço direito começa a ficar dormente.

"Leia, Patrícia; leia o livro!" Como ler o livro? Bem acima da minha cabeça toca uma canção que deve ter nascido em qualquer lugar desse mundo, menos em Pasárgada.

- Entón, eu nón sei se ela tá mió ou nón.
- Mas será que não vai miorá nunca?
- Tomara que miore, porque fica lá sofrendo, daí.
- É, daí fica cada dia pió.

Indo pra Pasárgada, o ponteiro do relógio anda mais devagar. Das quase quatro horas previstas, acho que me nasceram pelo menos uns dois cabelos brancos.

Agora, já à salvo, inteira e descansada, chego à conclusão de que lá em Pato Branco é que deve ser mesmo a minha Pasárgada. Lá, quando chego no alto da Tupy, vejo jardins sempre floridos e luminárias antigas. E, no fim da tarde, os homens regam as flores. Lá em Pato Branco eu vejo um movimento pacífico de pessoas, umas cantigas de coral na Praça e um tobogã inflável gigante cheio de crianças.

Sexta-feira, ao meio-dia, devo voltar pra Pato Branco. Ou será para Pasárgada? Então eu troco o título deste texto, e agora fica: de Pasárgada pra Pato Branco, daí.
...

domingo, 6 de janeiro de 2008

Caixa de Pandora

E eu, que sempre me julguei tão esperta
de repente me vejo com a porta aberta
com os pés descalços e um laço no cabelo
esperando vê-lo
eu abro todos os mapas que já conheci
e o mapa astral e o mapa rodoviário
pra ver se aqueles olhos ordinários
têm alguma chance de chegar aqui
É aquele sonho que me deixa mais fragilizada
mulher transtornada
que quer matar o pensamento que não morre
que quer parar com um desejo que escorre
pelas palavras
E eu, que sempre me julguei senhora
de repente me vejo escrava
aflita por dentro, paciente por fora
como alguém que quer voar mas não tem asas

E eu, que sempre me julguei tão certa,
de repente me vejo totalmente alerta
tentando controlar as minhas brasas.

sábado, 5 de janeiro de 2008

O Gladiador

O Gladiador

No meio da noite me surge
A tua face exangue;
e tudo de ti vem a mim,
vem o teu sangue
fugindo para as minhas veias
No meio da noite, e a noite urge.

E a minha paz por um momento
se destrói.
Um calor devasso me corrói,
desperta em mim aquilo que gostas.
O desejo pelo teu delírio
o teu martírio, as tuas costas,
e me consumo em pensamento.

No espelho do meu sonho o teu rosto glabro
e o teu olhar, com um suspiro inerte.
A tua saliva, o teu flerte
se refletindo à luz de um candelabro;
no gelo um vinho,
tudo ao teu agrado.

Porque tu és assim, enigmático.
O teu fetiche, teu lábio de ópio
A tua lança,
tua armadura que desfaz meu ócio;
o Gladiador,
perigo sem lei para o meu sonho erótico.

Nudez

Sem palavras.
Atira a toalha no escuro
E quebra o primeiro silêncio.

Sem palavras.
Contempla o luzir das estrelas
E analisa o reflexo.

Sem palavras.
Ignora os defeitos de humano
E se deleita no sonho.

Sem palavras.
Desata os desejos da carne
E transcende a noite.

Sem palavras.
Declara paixão ao delírio
E se derrama em versos.

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