domingo, 27 de janeiro de 2008

Bicho Papão

por Patrícia

Dos tempos de criança, eu guardo muita coisa. No fundo do quarto de visitas – hoje, um velho depósito de lembranças e quinquilharias – guardo, por exemplo, um baú com muitos objetos daquela época. Numa tarde chuvosa em que me permito o ócio, sou surpreendido pelo pensamento. Vejo o baú e, inevitavelmente, a máquina do tempo é ligada; sento-me e revejo cada pedaço do meu passado.

Çarungaua – sim, é este o nome - foi o meu primeiro livro. Era um pequeno índio que procurava, incansavelmente, pelo seu nome. A história é bastante complicada para ser lida aos seis anos de idade, e confesso que só consegui realmente entendê-la quando tinha lá meus treze anos. Ali, sentado, olho cada figura, cada detalhe. Releio. Lembro-me de como foi difícil pronunciar, pela primeira vez, o título do livro. Çarungaua, o menino que vivia “no tempo em que macaco era gente e bicho falava”. E o seu nome estava inscrito numa pedra, que foi carregada por um urubu!

Olho para os brinquedos, muitos aos pedaços, que guardei para o caso de eu ter um filho. Para o meu filho eu daria todos os brinquedos de que mais gostava, leria todos os livros e cantaria todas as cantigas – até as que não sei. Mas os filhos... como tê-los? Sacudo a cabeça rapidamente; dizem que isto muda o pensamento. Sigo olhando tudo, absorvendo cada detalhe.

O pensamento volta. Por que eu tinha de olhar este baú? Filhos... Como tê-los? Penso em como a criança alegre que fui pode ter se transformando num homem assustado, solitário, que passa algumas tardes narrando sua vida a um psiquiatra. É preciso entender! Volto a pensar; o ócio sempre me faz refletir demais, além do que quisera.

Os medos, penso nos medos. Não os que tenho, mas os que já tive; os que podem ter sido a causa dos meus medos de hoje. Mas eu tinha tão poucos medos! Medo de perder o ônibus que ia à escola, de gaguejar no teatro da Igreja, de furar o pneu da bicicleta quando saía para longe. Não pode ser isso; penso mais. Enquanto penso, troco as pilhas do velho despertador. Acerto a hora, ouço o tic-tac incansável que me reforça a sentença: tempo-passa, tempo-passa, tempo-passa... Penso mais. Lembro mais. Quando bem criança, daquelas que ainda não conseguiam ler o Çarungaua, eu tinha medo do escuro. Não porque fosse escuro, porque não pudesse ver; mas porque, em algum momento, ouvi uma cantiga que falava mais ou menos assim: “Nana, neném / Do meu coração / Não tenhas medo / Do bicho-papão”... Deve ter sido neste momento que entendi que o bicho-papão existia, mas que não era preciso ter medo. Mas onde estaria? Era sempre um mistério. Quando apagavam-se as luzes do quarto, um feixe de luz que vinha da rua deixava ver ainda as paredes, e em nenhum lugar eu via o tal bicho. Só restava que estivesse embaixo da cama; por isso, nunca encorajei-me para olhar. Deixássemos lá o bicho, já que, não o tendo visto, nunca me havia feito mal nenhum. Volto para a minha realidade. Os filhos... Como tê-los? E, se os tivesse, teriam também eles medo do bicho-papão? Teriam gostado de ler o Çarungaua? O baú à minha frente traz à tona, outra vez, uma vontade enorme de ter filhos. Se eu, nesta tarde chuvosa de ócio, tivesse saído à procura de uma mulher, quem sabe teria um filho no próximo ano. Mas ainda sinto medo, e é melhor não olhar para debaixo da cama.

Penso no dia de ontem. Numa rotina matinal inconsciente, liguei a televisão e ouvi o jornal enquanto tomava um café feito às pressas. Pensei em como, todas as manhãs, saio de casa com o medo de ser a próxima notícia dos jornais. Pensei, como em todas as manhãs, que na próxima manhã ouviria um CD em vez do telejornal. Mas eu já disse: era uma atitude matinal inconsciente, e, nesta manhã repeti o ato, o pensamento e a promessa. Penso novamente que, amanhã, ouvirei um CD de música erudita.

Fecho o baú; é triste lembrar. Por que toda lembrança me parece triste? A consciência do tic-tac que repete tempo-passa, tempo-passa começa a se tornar incômoda; retiro as pilhas do despertador. Busco pelo jornal impresso atirado, nesta manhã, na minha garagem. Leio a matéria de capa. Triste notícia! Cada página virada é uma angústia que se forma, inclusive a do resumo das novelas: morre, na ficção, o meu personagem favorito! Foi assassinado. Quem o matou?

Triste, triste. O homem triste que se alimenta dos meus medos entende que absorve as dores do mundo. As dores que estão nos telejornais, nas páginas das revistas, nos desenhos animados japoneses. As dores vêm em carros desenfreados, em ataques de fúria, em desejos de vingança, em desejos de poder. Vêm nos projetos assistencialistas, ambientais, e em tudo o mais de belo que se criou na tentativa de eliminar um mal que já existe. As dores vêm, vêm, e o homem que se alimenta dos meus medos se torna triste, e volta a sentar-se em frente a um baú cheio de lembranças de um tempo feliz, esperando ansiosamente pela próxima visita ao psiquiatra.

Volto a colocar as pilhas no relógio. Tempo-passa, tempo-passa, o tempo passa e tudo o que está no baú continua tão lindo quanto foi um dia. Na verdade, esta tarde chuvosa de ócio faz em mim, enfim, uma conclusão: tudo permanece igual, exatamente como quando eu ouvia a cantiga do nana neném. Os brinquedos todos estão ali porque eu os guardei; os livros todos estão intactos, porque eu os valorizei. Quanto aos medos, só o do bicho-papão é que ainda permanece, agora não debaixo da cama, mas ao meu redor, escondido detrás dos olhos de todos os que sofrem.

E, com tanto medo, fito o baú e outra vez murmuro:
- Filhos... Como tê-los?

Um comentário:

Unknown disse...

Mas se não tê-los...Como sabê-los?

Marcas de tempo, marcos históricos...Que mania esta nossa de demarcarmos terra, territórios e tempo para tudo, para nascermos, para chegarmos, e finalmente o tempo sem hora marcada para sairmos de cena????
Por enquanto Patrícia querida, devemos viver o espetáculo da vida, sem tempo de espera, de chegada de saída....de finalmente gerarmos vida. Afinal sabemos que os bicho papões existem, e como existem, mas fadas-madrinhas, príncipes encantados, e escritores estão aí para reinventarem a realidade a cada nova hora, a cada novo dia, mês, ano, século.....Continuemos essas histórias, alimentemos nossos sonhos ,´escrevendo nossas impressões, afinal estar na vida, gerar vida e marcar o tempo através da nossa arte é que nos inclui na história da vida, do tempo de chegada e de partida.
bjos
Prof. Adriana Auzani