quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Moço do semáforo

Meus olhos amargos te rejeitam,
moço do semáforo.
Acham pobre teu malabarismo.
Atiram em mim a imagem
do teu braço, que é forte;
da tua face, que tem rubor;
do teu movimento, que é vigoroso.
Cada pedaço teu vem cheio de adjetivos
para dizer que não devias estar ali.
Meus olhos amargos não permitem
nem sorriso, nem piedade,
nem moedas. Nada.
Perdão, moço do semáforo,
pelos meus olhos amargos.


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Cantiga de Retornar

Essa agonia de querer abraçar
o mundo
ao alcance do olhar
de querer embalar
para viagem
trancar na mala, encadear
de doer no peito,
de rasgar por dentro
Essa alegria,
essa vontade de chorar
de ter certeza que a vida quer falar
essa agonia de querer ficar
e para sempre ficar e ficar
deitar no chão
olhar o céu, olhar o mar
mergulhar
no infinito desse imenso altar
Ah,
essa agonia é que me faz amar

Se eu não puder ficar, meu Deus,
permita-me, permita-me,
permita-me voltar.





sábado, 19 de setembro de 2015

Sinfonia do Poeta Louco

As árvores azuis bailam com o vento,
adormecidas,
na escuridão da tarde.

Em algum lugar adormece o mundo diáfano,
os homens transparentes definham lentamente
e em seu lugar brotam os homens opacos.

Alguns homens opacos se apossam dos transparentes,
espíritos divididos, cores opostas.
As árvores azuis dançam uma valsa perfeita
e o espírito dividido tem um poço de lágrimas.
No poço do homem transparente reluzem peixinhos dourados;
no poço do homem opaco, os peixinhos apodrecem.

Quando o espírito dividido se torna um,
os peixinhos apodrecidos conquistam os reluzentes,
a menos que os reluzentes deles se alimentem.

Enquanto isso,
as árvores azuis valsam e valsam,
adormecidas.


domingo, 26 de julho de 2015

Curriculum para deixar de blá-blá-blá

Meu nome é Patrícia, nasci em 1983, e esse é o meu curriculum nada convencional, só para o caso de ser preciso eu explicar quem eu sou. É que tenho sentido uma necessidade de pintar uma placa na testa pra deixar algumas coisas mais claras, depois de passar por uma diarista que pensa que eu não entendo de faxina e de receber um HA-HA-HA ao comentar que eu cresci na roça.

- Por que você riu?
- Porque você falou que veio da roça.
- Mas eu vim da roça.
- Ah... Achei que estava brincando...

Pessoas não nos conhecem e criam conceitos sobre alguns (breves) momentos que vivem conosco. Pessoas podem viver longos momentos conosco e jamais imaginar com quem estão lidando.

- Eu já castrei porquinhos, sabia?
- Hã?!!!

Então, acho que é preciso registrar minhas experiências, até para que pessoas saibam que eu domino bem uma foice. E tomem distância quando essa for a melhor alternativa.

Em 1990, quando eu tinha sete anos, meu pai - bancário, mas desde criança da roça e vivendo na roça aos finais de semana - foi transferido de cidade, e a família se mudou, por poucos meses, para uma nova cidade. A atividade de compradora, que eu exercia desde cedo buscando leite no mercado, ficou um pouco dificultada, porque o mercado ficava mais longe - e não tinha Mu-Mu para pegar no final da compra. Ainda em 1990, meu pai deixou definitivamente o Banco e nos mudamos para o sítio, e aí começou a nova fase do aprendizado que compõe a minha vasta experiência profissional.

A escola era uma escola do interior, dessas de todos os alunos - que somavam uns vinte - reunidos numa mesma sala, com um mesmo professor. Mas foi tudo que eu precisava. Cheguei à quinta série perfeita, pronta, sem qualquer aprendizado pendente. Seu Avelino, meu professor, era um verdadeiro mestre na arte de ensinar - e de educar também, muitas vezes, algumas crianças que não queriam estudar. Às sextas-feiras, nós - as crianças - ajudávamos o professor a limpar a escola. E o trabalho era sério, na segunda-feira escola limpa para uma nova semana.

Eu adorei o sítio, estar com meu pai para todos os lados, andar de trator, ir para longe, fazer descobertas. E aí ganhei o título honorário de Secretária do Pai - era assim que ele me apresentava nos lugares onde chegávamos, como as agropecuárias, os bancos, os supermercados, os escritórios em geral que ele frequentava na cidade.

Assim, o grude com o pai foi se desenvolvendo até virar ofício: quando eu tinha meus 10 anos, lá por 1993, as atividades foram aumentando o grau de dificuldade, e fui recebendo promoções: de carregadora de banquinho e lavadora de copos de ordenha, fui promovida a buscadora de vacas mansas; depois a buscadora de vacas menos mansas e que ficavam mais longe da estrebaria; depois fui promovida a ordenhadora (sem deixar de fazer as atividades anteriores, claro).

Se você tem filhos na idade de onze, doze anos, olhe para eles aí do seu lado: com a idade deles, ao invés de estar no aconchego do quarto jogando videogame, cheia de eletrônicos e tênis de marca, eu estava lá na lida do campo, acordando noite escura, tomando meu café e vestindo toucas e três meias nos pés para pisar a geada e ir buscar as vacas para a ordenha. E era assim à tarde também: quando o ônibus chegava da aula na cidade, o lanche era rápido para se agasalhar bem e fazer o trabalho da segunda ordenha do dia. O leite era o principal sustento da família, e esse meu trabalho teve longa duração, até os 17 anos; com sol ou com frio, eu estava lá com o pai. Experiência nível máximo no quesito ordenha. Por causa de toda essa experiência, fui passar um esmalte nas unhas pela primeira vez lá pelos 18 anos, porque antes disso as unhas tinham de estar sempre curtinhas. Nada de beliscar as vacas.

No período em que não tinha aula, depois da ordenha, geralmente tínhamos - eu, o pai, e muitas vezes minha irmã - hectares e hectares de terras para cuidar na enxada, capinar, arrancar matos com as mãos na raiz das plantas para não quebrar os talos. Arrancamos muito feijão nessa vida, batemos o feijão, ensacamos o feijão, viramos o feijão espalhado no armazém, por dias e dias, com os pés, para evitar que mofasse. Quebramos milho na colheita das espigas, mãos cheias de cortes das folhas ásperas e cortantes; batemos o milho, ensacamos o milho. Capinamos muitas e muitas roças com o pai. Pisamos muito barro, muito chão batido.

Tirei muito esterco dos chiqueiros, das criações de porcos do pai, empurrando com umas pás grandes e pesadas de madeira. Lavei muitos chiqueiros, ajudei a vacinar, a castrar porquinhos. Nunca passei a navalha no animal, mas segurei firme e olhando atentamente. Eu sei que aprendi. E aprendi direitinho a técnica de passar o canivete afiado na batata inglesa, antes do corte. Para descontaminar. Nunca perdemos um porquinho por causa de castração, sempre se recuperaram mais rápido que o meu cãozinho que foi para o veterinário.

Usei muitas galochas nessa vida, brancas e pretas, sempre até quebrar de tanto usar e ser cortada para virar um sapato - aí era hora de ganhar uma galocha nova. Não para moda, mas para pisar barro mesmo, para tirar leite em dia de chuva, para limpar chiqueiro.

Andei muitos quilômetros puxada de trator, sentada atrás em cima da plantadeira, não deixando que nenhum cano escapasse do lugar para que as sementes entrassem sempre na vala certa, cuidando que não acabassem nem o adubo, nem a semente. O pai na direção, sempre atento a qualquer sinal que fizesse.

Capinei muitas vezes o lote de casa, o parreiral, ajudei a colher uvas, pisar uvas, lavar o barril, tirar a bagaça - sempre com o cuidado do pai, porque só o cheiro embebedava.

Perdi a conta das vezes que ajudei o pai a tirar couro de boi carneado em casa para o consumo. O boi pendurado pelas patas traseiras, aberto ao meio, já com as vísceras e os órgãos tirados, separado o que podia ser para o consumo. Toquei no braço muitas horas a máquina de moer carne, pra fazer a carne moída do gado ou o salame, quando era a vez do porco. Ajudei na limpeza da buchada pra fazer dobradinha. Tocar a máquina pra encher salame. Fazer fumaça no salame pra defumar, diariamente aos pouquinhos, até que ficasse bom para o consumo.

Segurar o saco pra quirela quando o pai moía o milho na máquina, para alimentar os bichos.
Pegar galinha, segurar - nunca tive força pra quebrar o pescoço, então vinha a mãe ou o pai; queimar na água fervendo pra tirar as penas, depenar, tirar os "penotes" e as "penugens". Abrir a galinha, cortar os pés, a cabeça. Limpar a moela da galinha. Tudo sempre muito bem higienizado.

Tinha a parte de dentro da casa também, claro - não só da nossa, como também o casarão enorme da minha avó, muitas vezes, nesse caso com cera feita de parafina e óleo diesel e passada de joelho, lustrada com escovão de ferro até abrir o brilho. Na minha casa era mais fácil, casa de alvenaria, só uma sala para encerar, piso de cerâmica. Esfreguei muito rejunte com a escova, toda a semana - era assim que a mãe ensinava. Nada pela metade. Nada mal feito. Ou faz inteiro ou suma da minha frente que eu mesma faço. Mas era melhor fazer bem feito, porque a mãe era braba pra caramba. Debulhar amendoim para a mãe fazer doce. Debulhar pipoca que a mãe colheu, até fazer bexiga nas mãos, pra guardar nas garrafas pet - eram o estoque do ano.

Hora feliz era a hora de comprar roupa: no fim do ano, geralmente único momento do ano de fazer compras, salvo se houvesse algum motivo em especial. O par de tênis era usado até estourar, a roupa até não servir.

E a vida na roça não era ruim, não. Quando era adolescente, me sentia diferente porque era a única das colegas da escola que tinha essa vida, que trazia as mãos calejadas e nunca um esmalte nas unhas. Mas era assim que eu conhecia. E tinha meu tempo de estudar respeitado, absolutamente venerado pelos meus pais. Quando eu quis escrever um livro, nos meus dezesseis anos, o pai se virou para conseguir uma máquina de escrever emprestada, e respeitavam minhas horas de datilografia, mesmo na hora da novela. Se tinha prova na escola, a única tarefa era tirar o leite - resto do período livre para estudar. Ninguém faz barulho, ninguém atrapalha. Sempre foi assim. Isso quando não vinha a mãe ajudar, enquanto ainda nas primeiras séries, lá com o professor Avelino.

- Mãaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaeeee!
- Quêee?!
- Eu não consiiiiiiiiiiiigo essa conta de dividir que tem dois números no denominadorrrr!!!
- Mas tu nem tá ainda estudando isso!!! A tua tarefa é só com um número!
- Mas e se tiver dois na conta?! Eu querooooo sabeeeeer!
- Pare de chorar! Quando eu subir eu te ensino. Espere acabar de cortar essa lenha!

Tenho braços definidos da lida na roça mesmo, moça. Na academia eu só melhoro o que eu ganhei com a vida, com o que adquiri de experiência nada leve até meus 17 anos, até o dia em que passei no vestibular e no primeiro emprego, e saí de casa para começar a minha vida.

Engraçado é que o meu curriculum começou a partir daí... Não era certo eu contar tudo isso como experiência? Quem disse que isso não vale? Essa dureza me ensinou a persistir na tarefa por muitos anos, mesmo quando eu não gostava totalmente, a ver que dava resultado, a saber o quanto custava o sustento de uma família, a sentir no peito a tristeza quando via por algum motivo o leiteiro não vir e a gente perder tantos litros de leite sem vender, a sentir quando uma vaca ficava doente, quando o pai ou a mãe ficavam doentes. Me ensinou a fazer mesmo quando eu tinha nojo, da aparência, do cheiro, e a aprender que o nojo passava quando a gente se habituava. Me ensinou a respeitar a todos, me ensinou que lá na cidade as pessoas dependiam das coisas que eu e meu pai plantávamos, colhíamos, do leite que ordenhávamos. Me ensinou sobre a lei da oferta e da procura, quando passávamos tempos mais apertados por causa do preço do litro do leite, ou quando a chuvarada fazia o feijão que plantamos apodrecer na roça.

A vida do meu curriculum atual não conta essas coisas. Então eu saí de uma cidade, fui para outra, cursei uma faculdade, e por competência conquistei algumas coisas na vida, um emprego bom, algumas promoções, com pouca idade já alguns cargos de chefia, um salário melhor. Sou escritora, maquiadora, blogueira, gosto de moda, me considero uma pessoa conectada. Mas sou PA-TRÍ-CIA, não patricinha. Sacou o PÁ do meu nome? É isso que sou. Acompanhada de TRI. Coisas fortes. E aí alguém - um ignorante, no sentido exato da palavra, "aquele que nada sabe", olha de fora e diz:
- Aquela ali deve ter as costas quentes! Ou tem sorte, só pode!

Não, bem. Eu tenho caráter, competência e disciplina. São a minha maior - e melhor - experiência.
Obrigada, pai e mãe, pelo melhor curriculum que alguém pode ter nesse mundo de gente tão fútil.












domingo, 7 de junho de 2015

Quase tudo é por acaso

Depois do acidente que sofri e de suas consequências, estive pensando muito sobre essa coisa toda do acaso, do inevitável, das crenças espirituais e da fé. Bem, o fato é que a expressão "nada é por acaso" de repente deixou de fazer sentido - porque, na verdade, quase tudo é por acaso.

A negação é a uma das fases mais difíceis que enfrentamos depois de um evento ruim, ou de um trauma. As pessoas ao nosso redor tornam tudo mais difícil com suas frases de consolo que são absolutamente decoradas, fazem parte do vocabulário que aprendem na infância:
- Para Deus, tudo tem um sentido!
- Deus sabe o que faz!
- Nada é por acaso!
- Pense que poderia ser pior, você poderia ter morrido!

Na verdade, para quem está numa situação de depressão ou de sofrimento intenso físico ou emocional, dizer que "ter morrido" seria "pior" é a coisa mais sem sentido do mundo. Tivesse morrido, não haveria tamanho sofrimento. Fim! Mas não, você sobreviveu e agora precisa passar por tudo isso. E as outras frases, então? Deus sabe o que faz? Nada é por acaso?

No meu caso, fui atropelada por uma pessoa que dirigia num local proibido. Realmente: eu tinha um plano de saúde, fui atendida por pessoas maravilhosas, não quebrei nada, tive fissuras sérias em ossos que poderiam (ou deveriam, segundo o médico) ter me deixado com paralisia facial, tive TCE e uma lesão cerebral mas numa região que afetou apenas meu emocional e minha personalidade - ou seja, poderia ter sido muito pior! Mas e aí? Devo agradecer? Devo ser grata à pessoa que dirigia em local proibido? Devo ser grata pelos dias que passei hospitalizada durante minhas férias, num local a milhares de quilômetros da minha casa? Foi Deus quem colocou aquela pessoa ali? Foi o destino? Devo mandar flores à pessoa que sequer quis saber se eu havia sobrevivido? Que não se dignou a perguntar a meu esposo se ele precisava de ajuda por estar absolutamente sozinho, com a esposa hospitalizada e semiconsciente, num local de estranhos, por vários dias? 

Então, digamos que o acaso de fato não exista, e que foi Deus quem quis assim. Ficaria assim:

"Era uma vez a Patrícia. Uma bela manhã, no sétimo dia de sua viagem de férias, eu, Deus, a cutuquei logo ao acordar, para que ela se sentisse incomodada. Cada roupa que ela vestia era desaprovada por mim, e eu sussurrava isso no seu ouvido. Eu fiz com que o café da manhã dela estivesse ruim, ela reclamou. Eu fiz com que ela subisse para trocar outra vez de roupa depois do café da manhã. Eu fiz com que ela esquecesse o documento pessoal, e depois, quando o ônibus chegou para levá-la para conhecer as famosas dunas, eu coloquei na rua uma motorista para a atropelar no momento em que ela voltava para o hotel para buscar os documentos. Porque eu sou Deus, e tenho um caminho lindo para a Patrícia, mas que só vai se concretizar se ela passar por tudo isso."

Acreditar que nada é por acaso e que o destino é escrito por Deus é acreditar nessa historinha totalmente sem sentido. E eu acredito em Deus? Sim! Eu acredito! E por isso não acredito nessa história, jamais! Mas... e então?

Eu contaria a história de uma forma mais ou menos assim: 

"Uma bela manhã, Patrícia acordou enfraquecida espiritualmente. Assim, as forças do Universo, que se dividem em positivas e negativas, a afetaram negativamente naquele dia: tudo estava torto. Ela teve um amanhecer conturbado, apesar da boa expectativa com sua viagem para as dunas, e no meio daquilo tudo esqueceu seu documento. Quando precisou voltar ao hotel para buscá-lo, o fez exatamente no momento em que uma mulher, humana, falha, dirigia pela rua em local proibido, e a atropelou."

É simples, e Deus não tem nada a ver com isso. Deus não pode ser responsabilizado pelas falhas da humanidade, porque cada um de nós escolhe o que fazer, como fazer, por que fazer. As tragédias são o acaso, são o inevitável diante das nossas atitudes. Ninguém tem culpa, apenas nós, cada um de nós.

Mas aí, depois de tudo isso, entra em ação uma outra questão que me faz seguir confiante: a fé. Ter fé não é necessariamente acreditar num Deus e esperar que ele haja para resolver nossos problemas. Mas a fé move, sim, nossas montanhas interiores. Eu acredito no acaso, na tragédia, no inevitável - mas acredito também que, uma vez que erramos, falhos que somos, acreditar no bem atrai para nós todas as energias positivas do Universo, e então o panorama começa a mudar. 

Ouço muitos nomes para essa energia positiva que nos afeta, mas costumo chamar a minha de "Anjo da Guarda": um ser, energia do bem que me acompanha, que me protege, que me segurou no colo para que eu não arrebentasse a cabeça naquele atropelamento. Meu anjo da guarda já trabalhou tanto nessa vida! Meu anjo segue comigo. Eu acredito no meu anjo. E agradeço tanto ao meu anjo, porque ele me conduz após todas as tragédias e acasos que eu causo no meu impulso falho de ser humano. Com a minha fé, e com a sua luz, não importa o quão fortes sejam as consequências do inevitável, eu andarei por caminhos que sempre irão compensar qualquer sofrimento. E assim, nessa relação de troca, eu consigo afirmar que o que tenho e sou hoje - isso sim - não é por acaso: é consequência de uma tragédia que, por sua vez, foi por acaso. 

Porque apesar da tragédia eu me prefiro assim, como sou hoje, com essa personalidade alterada, mais firme, sem maiores dramas e com muito mais interrogações. E isso que sou é absolutamente definido de uma única forma: o que sou hoje é imensamente melhor do que fui, e é fruto de um acaso transformado pela fé, pela crença na energia positiva que me guia pelos caminhos do bem.




terça-feira, 19 de maio de 2015

Cataclismo

Perdão. Não é possível me resumir.
Não é possível sintetizar, abreviar,
expressar-me de forma que não seja assim:
sumariamente amorfo.

Eu olhei o mundo pela janela, 
pelos livros, 
pelas palavras das pessoas que falam desenfreadamente
pelo silêncio dos que apenas observam
olhei pelos olhos pequenos do meu cachorro.
Tudo eu olhei.
Eu olhei aquilo que os olhos não enxergam,
perguntei seriamente:
- O que espera? Por que não responde?
Nada eu ouvi. Nem meu silêncio,
aquele que sempre gritou as respostas
nem ele responde. Tudo está mudo.

Eu li os dicionários, os espelhos.
Nada me define. Não é possível.

Eu viajei, contei histórias,
encontrei respostas que não cabem às minhas perguntas,
retornei, olhei meu lar, olhei meus olhos.
Nada me define.
Há um espaço no infinito entre aquilo que sou
e aquilo que se pode explicar.

É vão perguntar.
Eu não sou.












terça-feira, 28 de abril de 2015

Primeira lição básica feminina para Pietra


Querida Pietra

É certo que ainda hoje sua existência não se consolidou, e que talvez nem se consolide. Talvez eu nem tenha o gosto de vê-la nascer; talvez a veja nascer mas esteja tão velha que já tenha esquecido dessa lição de sobrevivência na qual inevitavelmente pensei já em tantas vezes na minha vida. Então, resolvi escrever este manual, básico, resumido, para que seja útil, quem sabe a você, quem sabe a outras pietras, outras meninas de outros nomes e de outras mães.

Quando você completar seis anos, já tendo aprendido a ler, será imprescindível que conheça essa lição. Se a mamãe não estiver presente, peça ao Papai que mostre, na prática, como fazer.
A lição é simples: fique em pé e imagine um banquinho atrás de você. Esse banquinho tem a altura dos seus joelhos. Então, leve as mãos para frente, o bumbum para trás, e abaixe, como se estivesse sentando nesse banquinho. Fique assim por alguns segundos, então levante, e repita algumas vezes até que consiga permanecer assim, nessa posição, por mais tempo. Exercite todos os dias. Depois de escovar os dentes, pela manhã, treine sempre um pouquinho. Nunca pare.

Os adultos que souberem dessa lição vão dizer que mamãe está ensinando a você um exercício físico que chamam de "agachamento" - e é verdade! Então dirão que você deve deixar isso de lado e estudar a tabuada, a lição de violino, estudar a poesia para declamar na escola, ou simplesmente brincar de bonecas. Não dê ouvidos, minha querida. Faça tudo isso, mas não deixe jamais que essa lição caia no esquecimento.

"E por que devo fazer isso, mãe?" - você deve estar se perguntando. Não posso negar que sei o quanto isso será importante para sua auto-estima, quando, já adolescente, perceber que é a única menina da classe que tem as coxas firmes e o bumbum no lugar, porque é para isso que nos mandam - mulheres que somos - adotar o agachamento como uma prática na vida. Mas não é por isso.

É por causa dos banheiros públicos, minha filha. São trágicos. São lugares nos quais entramos para não fazer o necessário em qualquer outro lugar, para evitar o atentado ao pudor - pois qualquer outro lugar seria menos periculoso. Você deve lembrar dessa lição sempre que precisar usar um banheiro público, não importa onde seja. Nunca sente na privada, lembre-se do que mamãe lhe disse. Imagine o banquinho na altura do seu joelho, e ponha força na coxa. Deixe o peso todo no calcanhar para não forçar sua coluna - isso nunca pode acontecer - mas JAMAIS coloque o bumbum no assento, mesmo que pareça limpo, porque as pessoas do nosso tempo são assim, de aparências até mesmo quando se trata da limpeza do vaso sanitário.

E eu garanto: com o tempo, você vai ver em quantas coisas esse conhecimento será útil, inclusive para aqueles momentos em que você precisar ficar agachada na primeira fila para uma foto da turma, e o fotógrafo for ruim, lento ou inseguro. As destreinadas vão sofrer... Você, não!

Com amor,

Mamãe.

Rio de Janeiro, 09 de abril de 2015

segunda-feira, 23 de março de 2015

domingo, 22 de março de 2015

Surdez

A alma grita novas ideias
e nenhuma tem nome: então, corra!
Mas o ouvido surdo
do corpo... Que corpo?
O corpo dorme.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A fatídica visão praiana dos sexos

Enquanto não me acaba o fôlego e o sol não adormece meu pensamento crítico, lá estou, correndo pela praia, e... observando. E a filosofia da vez era uma coisa normal de se observar na praia: os sexos.

Os sexos: homens e mulheres. Homens e mulheres num contexto praiano, liberto de (alguns) véus, porque a praia é um dos lugares onde um fiapo de liberdade aparece. E aí, meu amigo, a gente observa.

Já começo finalizando o meu pensamento: os homens estão em vantagem. O conceito estético de casal bonito começa a preocupar um casal que era bonito, quando se atinge um certo momento da vida. Aí a gente traça uma linha do tempo do relacionamento, dividida em três fases: na primeira, alguma coisa não fecha, porque a mulher, nova e bonita, escolheu aquele homem, tão mais velho e de aparência não muito agradável; na segunda, o casal é bonito: a mulher (a mesma mulher), madura e convicta, está ao lado de um homem (o mesmo homem), um pouco mais velho e bonitão, com alguns cabelos brancos que começam a dar a ele um charme todo especial; na terceira, a gente não entende mais nada: como um homem bonitão como aquele (o mesmo homem) está ao lado daquela mulher (a mesma mulher) ACABADA?

Pois é, os homens estão em vantagem. E sim, a gente olha para a bunda dos homens. A gente olha porque sente um ódio enorme daquelas bundas que não têm celulite. A gente sente um ódio dos homens, que não malham o tríceps mas não precisam se preocupar com o temido tchauzinho balançando. As coxas dos homens são naturalmente definidas. As panturrilhas dos homens são definidas. Os glúteos dos homens são definidos. A única coisa dos homens que tem aquela saliência natural é a barriga - mas o que é uma barriguinha quando todo o resto está definido? Enfim, a gente tem um ódio da testosterona. 

É incrível como alguns homens feios começam a ficar bonitos após os quarenta. Cabelos brancos são charme, essas partes todas do corpo continuam definidas. Se eles tiverem bom gosto na vestimenta e nunca usarem sunga vermelha, serãosempre bonitões na praia. 

Do outro lado da história, estão as mulheres. E não vamos falar de beleza interior: vamos falar de celulite. De culote. De flacidez. De coisas que caem, que balançam. De coisas que precisam de uma dedicação intensiva para, ao menos, ficarem menos caídas. As bundas das mulheres têm aquele relevo persistente, chato de ver. E não, não adianta dizer que isso não importa, porque importa sim. Não é bonito. Ninguém gosta. No máximo, a gente aceita, depois de exercitar um tanto a autoestima e depois, talvez, de alguma terapia. Ou a gente morre malhando, pagando por tratamentos estéticos, fazendo dieta, novena, macumba, ou qualquer outra coisa que prometa o fim da flacidez. Malditos hormônios.

E tem mais: enquanto as mulheres estão ali, constantemente se olhando para ver se o biquíni está em ordem, se não está aparecendo algum pêlo indevido, os homens bonitões estão lá, cheios de pêlos. Cheios de pêlos! Quem foi que inventou que mulher bonita não tinha pêlos? Se eu soubesse quem foi, iria agradecer, simplesmente, porque concordo que essa história de pêlo já devia ter sumido da nossa raça desde muitos milênios - mas e porque é que os homens ainda podem ter pêlos, sem que isso seja um problema para o outro sexo? Sinceramente, não dá pra entender.

E tem ainda mais: o metabolismo dos homens está em vantagem. Os homens podem comer o dobro, beber o dobro, dormir metade, investir zero na beleza da pele, e ainda serão os bonitões - salvo se passarem da dose ou usarem sunga vermelha. Enquanto isso, suas mulheres estão entre a cruz e a espada: se não os acompanharem nas noites de pizza, serão chatas e talvez sejam substituídas ainda na fase 1 do relacionamento; se acompanharem seus homens nas noites de pizza e não morrerem para matar as famigeradas calorias, inevitavelmente serão um dia observadas na praia como alguém que está na derradeira fase 3. 

Mas o que tem de ruim nisso? Nada. Não há nada de ruim, se o relacionamento da mulher com seu homem e do homem com sua mulher for suficiente para suprir essa fatídica observação estética, à qual estamos, todos, condenados. 

Estar na praia, desse ponto de vista, é levemente irritante, e me dá uma vontade enorme de parar de correr, pedir uma cerveja, sentar na areia, adormecer e acordar homem. Se eu acordasse homem, eu simplesmente então ia controlar a cerveja e cuidar um isso do abdômen, e aí já poderia fazer foto para capa de revista. E nunca usaria uma sunga vermelha. Mas não: eu sou mulher. Então, vou continuar a saga incansável e sem tréguas para tentar nunca passar da fase 2 no meu relacionamento.


sábado, 3 de janeiro de 2015

Poema Proibido

É proibido, por ora, falar dos sentimentos,
armas destruidoras e indestrutíveis,
intensas, vorazes.
É proibido também deixar que falem
eles, os sentimentos.
Pois, que permaneçam para sempre calados
que jamais gritem suas dores,
jamais. É proibido.

Não se dirá nesse mundo nada mais a respeito.
Quando se fizer um suspiro de solidão
que se faça silenciosamente
para não despertar os que não querem ouvir.

Quando se perceber, nas profundezas dos dias chuvosos,
nas introspecções das noites de insônia,
nas íntimas retrospectivas indeliberadas,
nas visões de futuro, nos sonhos que se frustram,
quando em tudo isso se perceber um quê de murmúrio,
que se faça o silêncio.
Nada deverá ser dito.

É proibida qualquer tentativa de resgate,
qualquer ansiedade,
qualquer flecha de verdade em forma de palavra.
Use-se a lágrima, apenas.
Use-se o silêncio, a mais dolorosa mensagem;
a atitude, a mais contundente resposta;
a ausência, o mais poderoso argumento.