domingo, 27 de outubro de 2013

Crônicas da Intimidade - Quadradinho de Oito

Em dia de prova do Enem, o país inteiro é Enem. Televisão, internet, papo de elevador. E, numa dessas, surge uma piadinha na Internet fazendo alusão irônica à cultura inútil que se esparrama entre a nova juventude, simulando umas questões de Enem de brincadeira, e sendo a última:

"Calcule a rotação da terra levando em consideração o deslocamento provocado pelo impacto do quadradinho de oito nos bailes funks."

Rio muito sozinha, ele me pergunta do que estou rindo, mostro a tela do computador. Ele ri muito, mas no final me olha com uns olhos de quem não entendeu nada:

- Quadradinho de oito?
- É, aquela dança funk que virou a maior polêmica por aí, que dançam de bumbum pra cima, sabe?
- Não!
- Ai, amor! - faço aquela cara de "não acredito!" - Assim, ó!

Uns três segundos de tentativa de demonstração no meio do tapete da sala e paro, com um gemido, me torcendo de dor.

- Acho que desloquei uma vértebra!

Horas se passam, a dor não passa, e me pego aqui procurando o telefone da quiropraxista.

Porque a quiropraxia resolve quase tudo, inclusive a coluna vertebral de gente que não adora funk, mas adora mostrar que sabe de tudo - mesmo que seja o quadradinho de oito.



A trágica figura que me fez deslocar uma vértebra demonstrando o quadradinho de oito.

CRU-ZE-NA

Diarista em casa, apartamento novo, primeira vez que os vidros do apartamento seriam limpados, cheios de resquícios da construção: cimento, massa corrida, cola dos adesivos que vieram nos vidros novos. O trabalho foi árduo, e a diarista não ficou satisfeita com o resultado do próprio trabalho:

- Limpei, limpei, mas olha só, não saiu tudo. A gente precisa mesmo é de cruzena, que aí sim vai sair tudo.

Franzi a testa, fiz aquela cara de quem entende tudo do mundo dos produtos de limpeza e nunca ouviu um pio sequer sobre esse tal produto.
- Cruzena, Josefa? Isso é um nome de produto?!
Ela me olhava com aquela cara de "isso mesmo", fazendo sinal de aprovação com a cabeça.
- Nossa, não conheço esse produto! Mas onde se compra?

Agora era a vez da Josefa franzir a testa e me indagar, com um incontestável ar de estupefação.
- Ué, no mercado! Você não conhece Cruzena?!

Não, eu não conhecia Cruzena. Silabei:
- CRU-ZE-NA?
- Isso!

Peguei um papel, escrevi em letras de forma, mostrei:
- Assim?
- Isso!

Fim de semana, hora das compras, dividi a tarefa com o Henrique, no corredor dos produtos de limpeza:
- Amor, me ajuda a procurar: a Josefa pediu para comprarmos Cruzena para limpar os vidros. Nunca vi, vamos ver se tem aqui!

E veio então a terceira pessoa a franzir a testa nessa história, depois de uma breve olhada pelas prateleiras:
- Patrícia, Cruzena? Ela não quis dizer QUEROSENE?
- Não, é Cruzena mesmo. Olha aqui, eu anotei, pedi pra ela conferir o nome, é CRU-ZE-NA mesmo. Vamos procurar.

Não encontramos. O Henrique insistiu:
- Tenho quase certeza de que ela quis dizer "querosene". Já ouvi muita gente falando "querosene" de várias formas erradas diferentes!

E eu tinha querosene em casa, que eu usava para lavar os pincéis na hora de pintar telas. Estava guardada em separado dos produtos de limpeza, no armário fechado junto com os pincéis e tintas a óleo. Separei meu litro de querosene e pensei: vamos ver então.

Quando a Josefa chegou, passei as instruções do dia e finalizei com o litro de querosene na mão:
- Josefa, era isso que você queria para limpar os vidros?

E ela com aquele ar feliz, de quem vê o papai noel, de quem finalmente deixaria os vidros do jeitinho que ela gostava:
- Iiiiiiissooooooo!

A busca pela Cruzena foi encerrada, sem maiores comentários a respeito, com aquele riso segurado e solto pra dentro, de quem imagina a nuvem de pensamento da Josefa quando eu disse que não conhecia Cruzena:
"Só tem que ser dondoca, cruiz credo! Não acredito que essa moça nunca viu Cruzena na vida!"


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Meia fase

meia luz de sol que já se ia
soma lâmpada, luz e meia
meia luz de luz que não clareia
meio sol, meio noite, meio dia

meia luz ou
luz e meia?

lâmpada, na dúvida se acende
soma luz do sol que já se vai
meia luz, luz que se retrai,
luta contra o dia que se rende

luz e meia ou
meia luz?

poético crepúsculo, se atrase,
ou ande, tire logo a divisória
que quando a meia luz é compulsória
é defeito, não me apraz - é meia fase.





quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Possessão

(2002)

Não chore essa tristeza, que ela é minha.
A minha alma está sozinha,
e essa paz é que me traz alívio.
Chorar é tudo o que eu preciso:
lavar os fantasmas da alma,
recomeçar.

Não sinta essa melancolia, que ela passa.
As minhas lágrimas já são como fumaça,
somem de todo, só me resta o cheiro.
Gritar para dentro é devaneio:
louvar os fantasmas da casa,
poetizar.

Eu de novo

(2002)

Acho estranho esse meu novo jeito estranho
acho até que estou forte demais
A minha mágoa é um buraco sem tamanho
mas eu leio os jornais
e sigo essa vidinha cheia de paredes
(acho que sou só um tijolo a mais)
Tem um corpo quente na minha rede
(acho que ele dorme em paz)
E enquanto eu faço backup de todos os arquivos
vendo o mundo com essa cara de quero mais
procuro por esse escuro o último dos seres vivos
aquele que não me esquecerá jamais
Acho que se eu chorar eu congelo a minha face
(estou representando bem demais)
Acho que por mais que eu disfarçasse
alguém iria perceber meus ais
Mas eu estou assim bem controlada
(meus pensamentos já nem são fatais)
Não vou fazer nenhuma marmelada
nem vou chamar os homens de anormais
Eu vou apenas seguir minha vidinha
já que é essa a sina dos animais
e se a minha lágrima estiver congelada
- ah, é só um gelinho a mais.


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A menina que amava os trovões

Era dia de tempestade. Lá fora, o céu preto era cortado por raios intensos, acompanhados daqueles estrondos - os trovões. Para a menina, não era um dia de tempestade, porque tempestade tem aquele sentido de agitação violenta. Era um dia de paz.

Via a mãe correr assustada, rezar enquanto queimava os ramos bentos; o pai correr apressado para fincar o machado no chão de terra, em direção à tempestade e próximo da casa; a mãe preparar as velas porque, sempre que a tempestade chegava, era a luz que ia embora. Às vezes, o pai arrumava também o lampião. Via tudo acontecer ao redor e sentava quieta, esperando o pai e a mãe acabarem as orações e simpatias, ou procurava uma janela onde pudesse ver aquilo de mais bonito: os fios de luz entremeados, dando tons de azul ao céu preto quanto a tempestade era à noite. 

O momento de observação durava tempo suficiente para a mãe interromper o pensamento:
- Menina, saia já de perto dessa janela! Não tá vendo o temporal?

Cumprido o ritual da tempestade, o pai deixava qualquer lida da roça, fosse noite ou dia, e se abrigava em casa. E a menina sabia que, pai estando em casa, tudo estava seguro.

Tempestade à noite era jantar sem televisão, com a mesa à luz de velas grudadas em antigas latas de biscoitos, para ficarem mais altas que a comida. Era jantar quieto, silente, com pai e mãe às vezes apreensivos enquanto estouravam os raios e os trovões e quando as árvores sacolejavam demasiado. Depois do jantar, era quase sagrado um jogo de cartas à luz de vela, para dar um tempo de digestão antes de ir para a cama. E ali estavam quase todos, porque o pai fez questão de ensinar o jogo de cartas para os filhos ainda crianças, para que todos pudessem ser seus parceiros nas horas vagas.

Tempestade de dia era ainda melhor. Quando via a tempestade se aproximando, um suspiro de felicidade envolvia a menina. Questão de tempo até o pai chegar da roça, apressado, tomar seu banho e se recolher, e fazer o pedido:

- Bênhe, já fez o chimarrão? E pipoca!

E o pai estando em casa, tudo estava seguro. Não havia sentido para alguém ter medo dos trovões.
- Medo por quê?! É tão bom! 

O dia de tempestade tinha cheiro de pipoca, de mate-doce, de bolinho de chuva, de bolachas assadas no forno. Tinha cheiro de pai e de mãe, de família reunida. Tinha som de trovões e das vozes do pai e da mãe, italianos perfeitos, falando muito e bem alto, brigando na hora de contar quem fez mais pontos no jogo de canastra. Tinha a possibilidade de ganhar uma canastra do pai. Tinha silêncio. Lá fora, o mundo poderia cair, não importava, porque ali estavam a mãe e o pai, tudo iria ficar bem. 

Não precisava estar junto - podia estar em outro canto da casa, brincando, desenhando - ou escrevendo, quando já menina crescida. Só precisava estar ali, só precisava saber que estava tudo em ordem. Era simplesmente uma paz, um pequeno sorriso interior que nascia quando via apontar o primeiro vento de chuva - e que nasceria para sempre naquele interior de menina, mesmo quando crescida, mesmo quando a casa do pai ficava tão longe, mesmo quando não sentia mais o cheiro dos ramos bentos queimados pela mãe, nem o cheiro dos bolinhos de chuva e do mate com canela. 

Era só saber que estava ali. Era toda uma licença poética para os dias de trovões. Lá fora, o mundo parecia parar enquanto os raios acendiam no céu e os trovões faziam a sua intensa melodia. Era simplesmente amor, puro, claro, pitoresco, coberto de alívios, sem maiores adjetivos ou explicações.