quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A Casa da Nona

Desconstruíram, há alguns dias, a casa da minha nona. Simples assim, como se fosse feita de pecinhas de montar. Eu, italiana das boas, não tenho vó – porque bom italiano não tem vó, tem nona. E a casa da minha nona foi desconstruída.

Quando eu era criança, pensava que a casa da nona era o melhor lugar do mundo. O paraíso, de acordo com conceito infantil de paraíso que eu supunha. Ou talvez nem tão infantil: a cada dia me convenço de que o paraíso realmente deve ser uma grande casa da nona.

Meu paraíso de criança ficava no interior de uma cidade pequena do interior e era realmente grande, proporcionalmente ao tamanho que eu tinha e mesmo que tenho. Já de chegada, estava abrigado em um grande terreno fechado com tela de arame, com um grande portão de metal, que também servia de balanço quando a nona não estava olhando. Chegar até lá já foi muito difícil, mas nada que o pai não resolvesse colocando correntes nos pneus do fusca pra passar o barro. Depois veio o asfalto rural e as correntes foram aposentadas, e nessa época a casa da nona já não era o paraíso – porque eu já estava grande o suficiente para eleger novos paraísos. Mas ainda era a casa da nona, como foi até ontem, até hoje, até sempre na minha lembrança.

A nona gostava muito de ter flores na sua casa. Na frente, rente à tela de arame que compunha a cerca, a nona cultivava com perfeição centenas de flores de todas as cores e espécies, sempre preferindo as roseiras. Ao lado, aos fundos e dentro da casa da nona havia muitas flores de variadas formas, plantadas em vasos, potes de margarina e latas de tinta. Tudo era lindo e perfeito com o dedo da nona. Um grande pé de beijinho ficava ao lado da varanda: era uma diversão à época de sementes, porque permitia horas estourando aqueles balõezinhos de sementes.

A entrada da casa era uma grande varanda em L, como mandava o figurino das casas de nonas italianas da redondeza. A casa toda em madeira, com um grande porão, pintada em azul com marrom, as janelas venezianas de madeira com aqueles antigos cavalinhos de metal fixados na parede, do lado de fora, para segurá-las abertas. Uma legítima casa de nona italiana.

Tudo era enorme na casa da nona. A cozinha, enorme, tinha no canto um fogão à lenha, agora novinho, recentemente trocado pela nona, e uma escada que dava para o porão. A sala, também enorme, era ornada pelas samambaias verdinhas da nona; na parede e na estante, muitas imagens dos santos dos quais a nona era devota, porta-retratos e um quadro com aquelas fotos antigas da família, com a nona e o nono bem no centro, no topo, e todos os demais dez filhos, meu pai e tios, abaixo, por ordem de idade. Eram necessários dois jogos de sofá para contornar a sala inteira. Mais tarde, com muito orgulho, a nona colocou na parede da sala um óleo sobre tela pintado por mim. Da sala se estendia um corredor enorme com pelo menos cinco quartos, todos enormes, que tinham janelas enormes, muito ventilados, todos com cheirinho de casa da nona. Num cantinho fechado do porão ficavam a lavanderia e o banheiro, e lá fora mais um cantinho fechado onde o nono guardava o vinho, o salame, as cebolas e todas as outras coisas valiosas que produzia. E o carro do nono ficava ali, também, no porão. Mas muitas outras coisas ficavam no porão, porque um nono italiano guarda uma vida inteira no porão: as suas ferramentas penduradas em pregos pela parede, o trator, o cesto de taquara, a enxada e a foice. Ao redor da casa ainda se espalhavam outras preciosidades, como o lago com peixes, o chiqueiro, o parreiral, a horta enorme com pomar enorme, o potreiro, os pés de butiá, de goiaba, de figo da índia.

No meu paraíso de criança, nono e nona acordavam cedinho e acendiam o fogo no fogão à lenha, conversando um pouco, tomando o primeiro chimarrão do dia. Depois, arrumavam uma grande mesa de dez lugares, onde sentávamos, mesmo que só nós três, e tomávamos café com leite fresquinho, pão da nona, assado no forno à lenha, com nata novinha recém colhida. Para o lanche, a nona sempre provia umas latas de amendoim cri-cri para os netos – dos quais eu preferia comer só o açúcar que ficava no fundo da lata, com a colher, sentada na escadinha de entrada da casa. A sopa do jantar começava a ser preparada logo no cair do sol, pra não atrapalhar à hora da missa na TV, à noite. Quando queriam brigar, como todo bom casal de nonos italianos, a língua utilizada era mesmo o italiano, nos impossibilitando qualquer aprendizado de palavrão ou outra coisa ruim.

Quando criança, acho que passei mais finais de semana na casa da nona que na minha casa. O pai, ainda às sextas-feiras, apressava a saída do trabalho e da nossa escola para fugir para o sítio. Eu ia feliz, muitas vezes com a bicicleta de rodinhas carregada na Chevy – que agora substituía o fusca. A hora de voltar era sempre triste, porque era triste deixar o paraíso. Na cidade não tinha cheiro de casa da nona.

Muitas vezes pensei como seria para meus filhos o contato com a casa da minha nona, e imaginei que seria para eles um pouco menos paraíso do que foi para mim – até porque muitas coisas já haviam mudado por ali. Já não tinha mais as vacas, o leite e nata fresquinhos, a nona não tomava mais chimarrão nem café por causa dos problemas de estômago. Umas reformas colocaram um banheiro a mais na casa da nona, alguns eletrodomésticos mais modernos, decorflex no chão. Não tinha mais aquele assoalho de madeira que fazia barulho ao pisar. A nona queimou os livros velhos que estavam na estante de um dos quartos, porque o excesso de netos estava gerando problemas com os livros. Os beijinhos do lado da varanda foram removidos.

Muitas coisas mudaram no meu paraíso com o passar dos mesmos anos que me fizeram mudar o conceito de paraíso, mas aquela continuava sendo a casa da minha nona. O passar de vinte e poucos anos realmente muda tudo, inclusive os nonos e a sua casa-paraíso. A casa da nona, um templo sagrado, um símbolo da minha vida, da vida dos meus irmãos, do meu pai, de toda a prole dos nonos. De repente, os nonos aceitam um convite de ir embora e vão, impulsionados por todos os fatos que mudaram, ao longo da vida deles, o seu conceito de paraíso. Os nonos vão embora! Simples assim. E a casa dos nonos é desconstruída, destruída, desmanchada, levada embora junto com eles.

Talvez, se os nonos tivessem sabido o quanto eram importantes, o quanto a casa da nona era importante, tivessem ao menos deixado ali a casa, senão a sua presença. Eu, com a correria da minha vida e todas as outras prioridades, me tornei uma neta ausente e não pude nunca dizer o quanto os nonos e a sua casa eram importantes. Estava devendo há vários meses uma visita à nona e, por conseqüência, à casa da nona – e agora é tarde para pelo menos uma dessas visitas. Talvez: uma palavra que preferencialmente deve ser evitada.

Desconstruíram a casa da minha nona: um choque, um susto, o fim de um pedaço da vida, o fim do sonho de levar os filhos à casa da minha nona, pedir para eles dormirem ouvindo os sapos no lago como eu ouvia, pedir a eles se também sentiam medo dos sapos; o início de uma necessidade de escrever, registrar, fazer algo para ajudar a me lembrar, de alguma forma, quando estiver velhinha e com a memória ruim, sobre como era o meu primeiro paraíso – aquele que talvez tenha sido o melhor paraíso de toda a minha vida, efetivamente.

2 comentários:

Alvaro.vitro@gmail.com disse...

Parabens, lindo texto, lindo mesmo...
um abraço.
Alvaro

Alessandro Vitto disse...

Minha prima...
Creio que seja improvavel que outra vez em minha vida eu vá concordar tanto com algo que outra pessoa escreveu. Compartilho com voce em genero, numero, grau e com o coração arrebentado tudo o que voce escreveu. É uma pena......
Grande Abraço....
Alessandro Vitto