Reza a lenda que os Godzillas de Curitiba agem há muito tempo, cada vez com mais agressividade, e que ninguém nunca conseguiu detê-los. Pelo contrário, eles se proliferam, parecem miscigenar, evoluem, trazem à tona a teoria da seleção natural, embora ainda se veja em número relevante alguns elementos um tanto inferiores.
Os godzillas curitibanos vêm de todos os lados, quando menos se espera. O povo percebe que são eles que se aproximam, pelo barulho, pelas cores, pelas luzes e pela velocidade. Como a evolução os fez perder as escamas, ganharam diferentes colorações, conforme sua miscigenação: azuis, verdes, alaranjados, amarelos, acinzentados. Alguns desenvolveram, devido ao seu tamanho, uma espécie de sanfona em partes do corpo, o que lhes permite agir com maior desenvoltura, aumentando seu poder de conquista territorial.
E é no trânsito que eles insistem em viver. Em Curitiba, o trânsito existiria sem eles, mas o transitar se faz impossível quando eles surgem. Todos os que temem pela vida e pela integridade sua e de seu automóvel devem abrir passagem, imediatamente, para que eles passem sem a agressão esmagadora que lhes é peculiar.
Percebi o quão iminente era a ameaça dos godzillas de Curitiba numa manhã, quando vi, pela primeira vez, um corpo sem vida, envolto em sangue, no meio da rua interditada. Ali ao lado estava ele, provisoriamente aprisionado: um godzilla verde. Pela televisão, alguns noticiavam o fato, e ouvia-se não saber se houve, de fato, culpa do godzilla no incidente; diziam que testemunhas teriam visto o rapaz, motociclista, cruzar o sinal vermelho. Pensei que poderiam estar sendo coagidas, possuídas pelos godzillas superiores, pois o rapaz não havia sobrevivido para contar sua história. Enfim, me calei, pois ainda não conhecia a saga daquela raça.
Aos poucos, o noticiário godzilliano foi tomando conta das minhas manhãs, através do telejornal. Vi godzillas arrastarem pessoas presas em suas bocas laterais, que abrem e fecham em paradas estratégicas, abocanhando pessoas até que caibam ali - sentadas, em pé, caídas, não importa. Vi godzillas atropelarem pessoas na faixa de pedestre, arrematarem veículos inteiros nas esquinas, nos sinais, e vi tudo isso pelas câmeras que alguns humanos corajosos ainda ousavam transmitir.
Em dois anos vivendo em Curitiba, aprendi que os godzillas não tinham piedade. Uma quase certeza me veio numa outra manhã, vendo outra vez uma motocicleta caída quase na mesma esquina da anterior, manchas de sangue no chão, e depois a notícia: duas vítimas fatais de mais um godzilla verde. Mais uma vez, noticiava-se que seria o motociclista o culpado. Foi nesse momento que comecei a sentir medo: havia, sem dúvidas, uma conspiração a favor dos monstros que habitavam nossas ruas.
Um dia, a caminho de casa, presenciei uma quase cena de horror causada por mais um godzilla da mesma cor: sinal vermelho, o monstro cruza ao meu lado e quase abocanha vários motociclistas que haviam acelarado no abrir do sinal da pista perpendicular. Se o pior acontecesse, e não estivéssemos ali, pergunto: quem seria o culpado? Certamente, aquele que não sobreviveu para contar a sua versão da história.
Passei a pensar que a agressividade pairava sobre aqueles que tinham aquele pigmento: o verde. Como eram menores em quantidade transitando pelas ruas comuns, me senti menos acuada. Porém, tudo mudou.
Por força das mudanças da vida, fui arremessada para dentro do trânsito de Curitiba, atravessando de um lado a outro da cidade, passando por um lugar extremamente aterrorizante: o ninho dos godzillas amarelos. Apesar de ter vivenciado nessa rotina fatos tristes com godzillas de todas as cores, posso afirmar que nunca se viu antes, em outro lugar do planeta, lugar do trânsito que exija tamanha concentração e coragem para ser atravessado. Ali não há lei, é uma terra sem qualquer intervenção dos humanos: tudo é controlado por eles, os monstros amarelos. Não há sinal vermelho que os segure, e os humanos com seus veículos vão inacreditavelmente se rendendo ao poder dos mostros, saindo da frente, pisando no freio, respeitando aquilo que não se deve respeitar. É o medo. No horário de final da tarde, utilizar as pistas das ruas dos arredores é um ato heróico, principalmente se provar forte o suficiente para sairem ilesos, o humano e seu veículo.
Os godzillas de curitiba, apesar de não serem providos de asas, voam. Possuem rodas, e voam! Certo dia, nessa zona turbulenta, deixei um posto de combustível e adentrei com meu veículo a primeira pista da direita de uma rua com quatro pistas vazias, quando fui surpreendida por um godzilla que se aproximou voando pela pista da minha esquerda. Veio tão veloz que não foi possível ver de onde veio, tão poucos foram os segundos que precisou para me alcançar. Quando sua cabeça atingiu uma curta distância à minha frente, ainda com o corpo ao meu lado, começou a se lançar sobre mim, até me transpor por completo: simplesmente ficamos, eu e meu veículo, presos entre o monstro e a calçada, até que eu freasse meu veículo por completo, até parar abruptamente para que não fosse aniquilada. Assim, tão naturalmente, ele se pôs na minha frente, até parar. Tão naturalmente. Fugi, quando me recuperei, torcendo para que não me alcançasse, me sentindo uma sobrevivente naquele reino aterrorizante.
Dessa minha vida no trânsito têm me restado sustos, alertas, e uma coragem que vai nascendo aos poucos, para enfrentá-los. Apesar de viver num reino em que os humanos já se sentem tão acuados a ponto de reservar ruas inteiras só para os monstros transitarem, tenho esperança que, se conseguir fotografar o identificador dos monstros e alguns fatos hediondos que presenciar, algum órgão maior de apoio aos humanos possa fazer alguma coisa. Talvez precise da imprensa, talvez precise de cenas fortes, de pedaços de corpos de motociclistas que não sobrevivem para contar história - é preciso que algo de impacto aconteça para que os humanos se organizem para combater o reinado dos godzillas.
Por enquanto, vou colecionando memórias e registros, contas, como aquela que foi paga para consertar o pára-choques do veículo que foi agredido por um dos godzillas, quando estava estacionado próximo do ponto onde os godzillas param para abocanhar pessoas. Logicamente ele se foi, naturalmente, tão naturalmente como sempre, e jamais aceitará pagar essa conta. Até porque, segundo a lenda, o corpo de doutores advogados do Reino dos Godzillas orienta que pode cuidar com tranquilidade de todos os assuntos relativos a danos que os godzillas causam no espaço exterior - devem cuidar apenas daquilo que trazem dentro das suas barrigas, das pessoas que abocanham nas paradas estratégicas, pois estas sim custam mais caro. Assim, inteligentes que somos, não cobraremos a conta, temendo a vingança dos godzillas superiores. Não vamos por enquanto à imprensa, nem à Polícia, porque não temos provas - não há tempo para registros, há que ser muito ágil para fotografá-los enquanto fogem voando tão depressa.
Apenas recomendo aos meus amigos que tenham coragem, que se organizem, que não percam a esperança de combatê-los. Venho estudando e treinando a técnica do barulho e do estrago maiores, sem que se perca a segurança: não darei passagem, não me abaterei, gritarei contra eles com todas as forças da buzina do meu veículo, sempre com cinto de segurança, com os vidros fechados, e com o mais importante: minha câmera fotográfica.
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