quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Menino do jornal

O menino do jornal vem subindo a ladeira. Vem caminhando, está sôfrego. Vem empurrando a bicicleta colorida, a garupa carregada de jornais. No rosto do menino do jornal tem uma gota, que não é lágrima. É suor, que ainda não teve tempo de evaporar. Acabou de nascer, a gota; e logo sumiu. Tudo é uma questão de tempo, inclusive para as gotas de suor sob o sol escaldante.
De longe, se conhece que é o menino do jornal que vem chegando. É ele o único menino que passa pela rua naquele zigue-zague ritmado. Nos dias de chuva, quando seu rasto fica pelo chão, o menino desenha, sem querer, um exemplo prático de senóide. A onda está lá, simétrica. Poderia-se estudar, com o rasto do menino do jornal, questões importantes da Trigonometria.
Alguns detalhes estão claros sobre o menino do jornal. A bicicleta colorida fica mais colorida com o adesivo da banda preferida. Está sempre limpa, brilhando. O menino tem orgulho da sua máquina. Nem tudo é original; muito é adaptado. Para andar mais, para andar melhor, para deixá-la mais bonita. O menino do jornal gosta de ser visto, por detrás do jornal, e na frente da garupa. No ponto exato onde apenas ele seja visto. Ele, e a sua máquina, que é o seu orgulho.
O menino do jornal não tem dia nem noite. Nem tem estação. Para alguns, faz inverno e verão; para ele, faz hora de trabalhar. O menino do jornal está na rua, quando chove e o termômetro está negativo. E o dia não amanheceu. Ele se supera, tem força. Seu despertador toca muitas horas antes dos despertadores dos meninos da sua classe, na escola. E o sono não pode ter vez. É um campeão. E quando toda a cidade acorda, ansiosa para ler o jornal do dia, mal sabe que o menino do jornal está lá, preparando tudo, contando jornais, lembrando endereços, zigue-zagueando; ele e sua máquina, desde a madrugada.
Nada pode acontecer ao menino do jornal. Quando se demora pouco mais, a cidade, ora preocupada, ora revoltosa, se manifesta. Dentre os apelos pela chegada rápida do menino, ouvem-se poucos risos e muitas lamúrias. Então o menino atende ao celular que comprou com o primeiro salário, e é informado sobre o caos que se instala na cidade, em função da sua demora. Levanta a bicicleta, limpa o joelho que ralou, analisa se os jornais estão a salvo, e segue heroicamente o restante do percurso, empurrando a máquina, cuidando que o pneu furado não lhe cause maiores prejuízos.
A memória do menino do jornal não pode falhar. Entre as centenas de jornais que carrega na garupa, estão preferências que só ele conhece. Este fica debaixo da porta; aquele, na caixa de correio. Aquele outro, menino do jornal, você deve subir pela escada e colocar debaixo da caixa d’água. E o outro, ainda, você deve colocar em cima do pneu dianteiro direito do carro na garagem. O menino do jornal não pode esquecer. Tem que ser perfeito. Do contrário, vai atender ao celular e, outra vez, ser informado do caos que se instalou na cidade.
Quando o menino do jornal é interrogado sobre a sua profissão, ele diz: eu sou o menino do jornal. Mas poderia, sem mentiras, dizer: eu sou a base operacional daquela empresa que faz o jornal. Para quem não acreditasse, ele poderia contar, outra vez sem mentiras, que, quando ele erra, ocorre na empresa um terrível efeito dominó. Entre o menino do jornal e o balancete do jornal, há uma distância muito sutil. Mal sabe o menino do jornal. Muitos, mal sabem. Para alguns, o menino do jornal será, por toda a vida, o menino do jornal. E somente quando o menino do jornal já não for o menino do jornal, ele dirá, com orgulho, que o mundo seria melhor se todos tivessem um pouco de menino do jornal.

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Primeiro Amor

Lembro-me claramente da primeira vez que vi você. Você sentado numa carteira da fila ao lado, um lápis colorido na mão, no primeiro dia de aula da nossa turma de pré-escola. Estava lindo. Você vestia a tradicional bermuda xadrez azul e branca com uns lindos suspensórios pretos. A camisa, branca.

E eu estava lá. Na primeira carteira, da primeira fila, expondo meus novos lápis-de-cor, multicoloridos, cadernos encapados com celofane cor-de-rosa, uma tetéia. Pensei se eu estava bem no meu vestido rodado xadrez azul e branco, igualzinho à cor da sua bermuda. Arrumei a meia esticando-a até o joelho, conferi meu sapato preto. Estava tudo em ordem. Dali até você me notar, seria uma simples questão de levantar-me e apontar o lápis no lixeiro, próximo à porta.


Cheguei à conclusão de que o meu vestido xadrez azul não estava ajudando muito. Ou seria a idade? Talvez você gostasse de uma menina mais velha, bem mais velha que você, com uns sete anos, talvez oito. Mas eu só tinha seis, recém completados.


Passei noites e muitas horas de recreio pensando sobre o que fazer para que você me notasse. Pensei em derrubá-lo no pátio da escola, em dar-lhe a maçã que havia levado para o lanche, em lhe mostrar o coração que eu havia desenhado com o seu nome, quando aprendi a escrevê-lo corretamente. Mas nada eu conseguia. E você era daqueles meninos que saíam como um flash da sala de aula, bastava a ameaça do sinal. Ficava lá, jogando bola, tomando sorvete, comendo salgadinho com coca-cola e mascando chicletes.


Mas as crianças sempre têm umas idéias brilhantes. Naquela noite, em casa, eu fazia o que mais gostava: fuçava nas caixas de papéis que papai guardava. Aquelas coisas importantes, documentos que eu nem conseguia ler direito, folhas bonitas, coloridas, carbonos verdes, vermelhos, chaveiros e algumas canetinhas coloridas, tudo guardado naquelas caixinhas de sapato. Sentada no chão, na sala, eu olhava tudo; era a minha diversão predileta. Papai, do sofá, lendo revistas, vendo o jornal, respondia minhas perguntas, uma a uma.


Num momento da minha inocente investigação, encontrei um talão de cheques com algumas folhas, no fundo da caixa. Ora, se estava no fundo, papai não devia precisar. Ninguém nunca mexia naquelas caixas, somente ia-se acrescentando novos e novos papéis. Eu já sabia o que era um talão de cheques, já havia entendido. Era um bloquinho com folhas que podiam conter qualquer valor, e que pagavam nossas contas. Papai também havia explicado alguma coisa sobre o assunto.


- Pai, por que estes cheques estão jogados aqui nesta caixa, e não na sua carteira, como os outros?


O pai explicou que eram cheques antigos, de um Banco do qual ele não era mais cliente, e por isso estava lá, e não na sua carteira.


Subentenda aquilo que eu subentendi. Crianças são inteligentes. Brilhantes. Têm idéias inimagináveis. Eu logo vi, era aquela a saída. Eu podia ter tudo o que eu quisesse. Inclusive, o seu amor. E seria breve.


A tarde chegou e aquele era o dia mais feliz da minha vida. Eu caminhava para a escola com a certeza de quem faria um ato incomparável, que nenhuma outra menina, nem de sete, nem de oito anos, faria. O meu ato seria único, e você finalmente me notaria.


No recreio, pedi à minha melhor amiga que fizesse a intermediação. Num envelope colorido que fiz com folha de caderno, com aquele coração desenhado, contendo o seu nome no meio, mandei entregar-lhe o meu melhor presente. O cheque. Pensei numa quantia alta, considerável. Assinei. E mandei, com o cheque, um recado: é para você guardar, para o nosso casamento.


De retorno, ganhei um namorado. Você olhava para mim durante a aula, e, num momento extremo de paixão, mandou-me uma bala de hortelã. Eram dias felizes. E eu ainda tinha duas folhas de cheque, das três que estavam no velho talão. Guardei-as, como quem guarda o maior tesouro; uma pequena folha que pode me dar um grande amor. Haveria um momento para usá-las. Papai devia ser mesmo uma pessoa feliz, com tantas folhas como aquelas que ele tinha.


Infelizmente, o nosso namoro durou menos de uma semana. Na limpeza semanal da minha mochila, mamãe encontrou as folhas preciosas, guardadas, junto aos meus cadernos. Fui obrigada a falar o que havia feito com a outra folha. Claro, não disse tudo. Poderiam querer mudar-me de escola. Disse que havia dado, de presente, a um amiguinho. Triste decisão.


Papai quase enlouqueceu. Explicou-me que, se eu não trouxesse a folha de volta, ele poderia ser preso porque não teria dinheiro para pagar o cheque que eu havia feito. Fiquei sabendo que as pessoas pagam por seus cheques, com um dinheiro que guardam no Banco. E que é proibido assinar uma coisa em lugar de outra pessoa, e que a isso chamavam falsificação de assinatura. Mas eu expliquei que havia assinado com o meu nome, e, portanto, não havia este risco. Só que papai não podia ser preso! Não havia solução. Era o fim.


No dia seguinte, com aquela tristeza que você pode imaginar, cheguei à escola. Minha melhor amiga foi, outra vez, minha interlocutora. Pediu-lhe, que, se você ainda não tivesse usado o cheque, por favor, devolvesse, porque eu não o amava mais. E o que mais eu poderia dizer? Pensei na única forma de pedir, sem deixar parecer que eu havia roubado o cheque de papai. E que eu não tinha aquele dinheiro. Seria ainda mais terrível. Você teria rido, e o meu vestido xadrez azul teria sido pequeno demais para esconder a minha vergonha. Então falei o óbvio: devolva-me o dinheiro, porque não quero mais me casar com você.


Bem, foi aquele o fim do nosso amor. E eu lhe agradeço pela bala de hortelã. Certamente hoje, quase vinte anos depois, eu não teria coragem de mandar um cheque ao meu amado, para pedir-lhe em casamento. Mas minha melhor amiga, que havia sentido tudo de perto, disse-me uma linda frase de consolo, que havia ouvido em algum lugar: o verdadeiro amor, a gente não compra; a gente conquista.



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